segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DOIS LADOS


“Pra quê voltar se já sei o que não vou encontrar?” Abrir a porta do apartamento ao voltar do trabalho tinha sido seu pesadelo durante todo o dia. Ela não estaria mais lá. A despedida tinha acontecido naquela manhã, antes que ele saísse. “Nem teve a compaixão de partir quando eu não estivesse”, pensou. Melhor assim. Talvez pensasse que tudo continuaria igual, pois não teria havido despedida. O corte, a ruptura crua e clara era dolorosa, porém traria o alento da verdade. Encarar a realidade é melhor do que os prolongamentos angustiantes da ilusão.

Marcelo não era o melhor homem com quem Luísa havia estado. Não se assemelhava nem a Alberto em seus melhores tempos, mas tinha no olhar um desejo por ela, que a fazia sentir quando aos 20 anos de idade, passava de propósito pelos corredores da faculdade em seus vestidos curtos de tecido leve e solto sobre a pele morena e sentia cada olhar masculino a desviar-se de qualquer tarefa para apreciá-la. Aqueles olhares apagavam a adolescência sem graça, quando ainda magra, só tinha a atenção de um homem que quisesse se aproximar de suas amigas. O amante agora a fazia sentir o eriçar de pêlos na nuca da juventude. Sua feminilidade reacendida pelo retorno da auto-apreciação.

Alberto era solar, mas só via noite a sua frente. Lembrava do pedido de namoro. Pedido que ela recusou, mas que dois dias depois aceitou. Pensava no primeiro “eu te amo”, mesmo que hesitante, porém sincero, dito enquanto faziam sexo bêbados. A declaração teve que ser feita novamente no dia seguinte para que ela aceitasse o efeito. Não queria que parecesse tudo desculpa da bebida. Disse “eu te amo” a ele também e sentiu o coração acelerado enquanto o abraçava com a cabeça recostada sobre o peito dele.

Luísa sentia uma mão tocar sua perna e pressionar levemente a coxa direita, um arrepio que vinha da base da coluna à nuca. De olhos fechados se permitia sentir aquilo sem quebrar qualquer encanto. As buzinas a estourar seus tímpanos a fizeram voltar. Estava dentro do carro. Sinal verde e ela a relembrar a tarde anterior.

De tão só se perdia de si. Como um cego novato a tatear o mundo no escuro em busca de algo que reconheça. Sem rumo, reaprendendo a caminhar sozinho. Vivia com ela e para ela. Esquecera como tinha sido antes. Existia antes? Acomodou-se na tranqüilidade do matrimônio. Emprego estável, casa bonita e quitada, carro novo, mulher que amava. Tudo corria sem os sobressaltos da juventude. Alberto gozava a aposentadoria das aventuras aos 43 anos. Agora se perguntava onde o barco tinha mudado de percurso. Onde?

Ele saiu do banheiro e veio se deitar. Luísa lia um livro de Martha Medeiros que ganhara da irmã. Ele se cobriu com o lençol, deu um beijo em sua cabeça e virou o corpo, como de costume, para a mesa de cabeceira. Ela veio por suas costas, passou a mão ainda gelada pelo ar-condicionado nas costas dele e se aproximou, como que para aquecer-se. Era seu homem. Estivera sempre ali e ela sabia que poderia contar sempre com ele. Alberto virou e delicadamente começou a beijar a esposa. Há duas semanas não faziam amor. O cansaço, um programa interessante na TV, a vontade de ler um livro, uma indisposição, um desencontro, a TPM, a menstruação. Motivos de um lado e de outro que de escasso, ao longo dos anos, viraram rotina. Nada que percebessem de imediato. Eram as circunstâncias. Algo no meio do sexo a fez estalar os dedos mentalmente. Como uma chave elétrica a desligar toda a energia da casa. Algo apagou e ela não sabia onde poderia reparar o defeito. Foram até o final sem que ele visse alguma mudança. Recostaram-se para dormir e ela permaneceu insone. Foram 5 meses até que ela aceitasse e tomasse alguma atitude, mesmo que naquela tranqüila noite, todas as luzes dentro dela já estivessem queimadas.

Ele alimentou por anos a esperança de ser pai. Queria levar o filho aos jogos do Fluminense, queria ensiná-lo a andar de bicicleta, ajudá-lo no dever da escola, contar histórias antes de dormir. Não aconteceu. Se havia algum problema com ele ou ela, não quiseram saber. Jogar a culpa em um dos dois poderia ser o início de uma decepção velada, porém persistente.

Foi ao ginecologista sem avisar o marido. Estava atrasada há duas semanas. Não quis contar antes para não criar expectativas. Dentro de si ela tinha certeza que residia o maior amor de sua vida. Grávida aos 39 anos. Pelos cálculos, Felipe nasceria em novembro, bem perto do aniversário da avó paterna. Sucumbiu com apenas 2 meses de gestação. Alberto nunca mais foi o mesmo.

Ela não o alcançava mais. A perda tinha sido muito maior para ela, claro, mas sofreu em silêncio. Trabalhou mais, estudou espanhol, viajou para todos os congressos e simpósios que podia. Via o marido se afundar no próprio abismo, sem gosto, viço, descrente de tudo. Demorou a voltar ao normal.

Era domingo e Alberto não estava na cama. Luísa estranhou a ausência dele. Levantou e seguiu os ruídos que vinham da cozinha. Ele preparava o café-da-manhã e sorriu abertamente ao ver a mulher ainda com os olhos inchados e a boca seca. O dia nublado daquele outono frio em Porto Alegre era iluminado por ele, que acordara de um pesadelo de 11 meses. Foi assim de um dia para o outro. Reacendeu.

Luísa já não tinha mais as portas abertas. Existia amor nela, no entanto nada que o permitisse entrar novamente. Marcelo surgiu meio que por acaso. Malhavam na mesma academia. Trabalhavam perto. O encontro após o expediente era natural. Da sala de musculação para o motel, esse foi o caminho. Ela começou achando que seria apenas uma aventura para reviver um pouco do prazer próprio, da auto-estima. Se acostumou com as mentiras e passou a ser fria. Perceber-se indiferente à quase tudo a fez entrar no apartamento na noite de 18 de julho e dizer que partiria no dia seguinte. O marido, talvez em estado de choque, não reagiu. Ela ansiava por arroubos de desespero, uma briga antológica e uma reconciliação avassaladora. Teve o olhar perdido de um incrédulo.

Viram-se 3 vezes mais apenas. Todas referentes ao divórcio. Alberto mudou-se para o Espírito Santo afim de nunca mais retornar à Porto Alegre. Luísa ficou mais 3 meses com Marcelo e só aos 50 conheceu o homem que a acompanharia até a morte. Aos 72 anos uma prima comentou quase sem querer que soubera da morte de Alberto. Ele voltara a viver em Porto Alegre, na casa que era de sua família, havia 2 anos. O semblante de Luísa mudou profundamente. Não soube descrever o que sentira.

Sentiu saudade do café-da-manhã aos domingos.
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