sexta-feira, 28 de novembro de 2014

CONJUGADO

No andar de cima mora uma puta. Atende alguns clientes em casa. Inclusive eu. Ouço o ranger do pé da cama no assoalho, alguns suspiros e gemidos, o ofegar desesperado de quem quer saciar as necessidades mais primitivas, o choramingar de quem só quer uma companhia, de quem vive sozinho em um mundo conectado. Ela é uma agente social. Salva da amargura seres que só se relacionam através do dinheiro, que possuem uma dificuldade enorme em confiar em si mesmos. Confiam no poder do papel. Lá está ela para acariciá-los, elogiar, beijar, lamber, chupar, gritar, realizar fantasias, interpretar personagens. Tudo por 150 reais a hora. Corpo de academia. Rosto de Brasil. Pele de meio-dia na praia.
Ninguém me liga. Mãe não conta. Ela me liga para falar das dores. Da alma, peito, corpo. Diz que vai morrer cedo. Diz que meu pai não vale nada e que a deixou com um filho criança para cuidar sozinha. Diz que as pernas cheias de varizes doem cada dia mais, que as veias vão estourar a qualquer momento. Não diz que me ama. Depois de papai, não amou mais nada. Ou pelo menos não soube que amava, pois a existência dele a impedia de enxergar ou sentir qualquer coisa que não fosse angústia. Voltaria para ele quando ele quisesse. Nunca quis. E cresci nesse não querer. Meu nariz de batata é igual ao dele. Meu cabelo, meus olhos, só a boca é dela. Ela olha para mim e talvez sinta ódio. Ou não sinta nada. Mamãe é a única que me liga. Mas não liga muito para mim.
No fim do corredor do sexto andar deste prédio em Copacabana vive Dona Nelma. Após a morte do marido lhe sobraram a pensão e a vida que nunca teve. Antes enfurnada no apartamento, (sobre)vivendo para ele, para a comida que ele gostava, para a limpeza que ele apreciava, para o mau humor que ele exalava, para a insônia que nunca cessava, jogou fora tudo que imaginava. Hoje faz pilates, dança de salão e sexo. Cada atividade pelo menos uma vez na semana.
Na parede ao lado habitava um garoto de uns 21 anos. Veio fugido do pai no Mato Grosso. Era gay e não podia ser. Manchava o nome da família, dizia o pai. Não é meu filho, não pode ser. Não te criei pra isso. Não isso. Não aquilo. Não. Não. Veio corrido para não causar mais problemas na cidade onde morava. O pai bancou esse conjugado sem ventilação para se livrar da vergonha. Para os amigos disse que tinha mandado o filho pra ser doutor. Para si perguntava que sangue podre poderia ter contaminado o menino: o dele ou da esposa? O garoto chorava por amar o pai. A mãe chorava por não ter força. Queria o filho como ele era. Não pode, mulher! O que eu vou dizer pros outros? O garoto partiu de repente, assim como tinha chegado. Sem alardes. Era discreto. Ninguém mais o viu por aquelas bandas. Não houve despedida. Gostava de meninos? Sim. Mas também de Beatles, geleia de morango com torrada, Milan Kundera e correr na orla.
Na porta da frente um drogadinho metido a traficante. Ao lado a Dona Matilde, que cria 12 gatos. Abaixo de mim um gordo viciado em filme pornô. Todos em um cubículo que mal cabe uma pessoa. São raros os que vivem com mais alguém. Somos uma sociedade de solitários. Todos ligados pelo mesmo encanamento. Nossos restos se misturam e tomam o mesmo destino. Os encontros aconteciam no elevador, que fazia o mesmo trajeto e nos levava para planetas tão distantes.
Há dois dias eu sentia um cheiro estranho invadir o conjugado. Cada vez mais forte. Não havia quem se prontificasse a verificar o que era, de onde vinha, o porquê do cheiro. Acabamos nos acostumando a viver na merda mesmo. Mais um pouco não faz diferença. No quinto dia de mau cheiro, acordo com um estrondo bem perto de mim. A sensação era de que uma bomba havia atingido o prédio.
O conjugado ao lado foi arrombado pelos bombeiros. Meu sono pesado e o Lexotan impediram de ouvir as sirenes, que agora ocupavam todo o ambiente. Levaram o corpo do garoto de 21 anos. Ele estava lá todo esse tempo. Não falaram para nós o motivo da morte. Morreu de esquecimento.
Eu acordo, levanto, bebo água, volto a dormir, acordo, levanto, como alguma coisa, deito, olho o teto, pego no sono, não sonho, não ronco e ocupo apenas um canto da cama. Assim seguem os dias e noites, meio sem sentido, em um compasso fora de ritmo, porém constante.
Minha mãe me liga. Diz que sente saudade e que um dia virá me visitar. De vez em quando ela fala isso, mas nunca vem. Melhor assim. Diz também que meu pai ligou e perguntou por mim. Há 3 anos não falo com ele. Ela reclama da aposentadoria. Os remédios aumentaram. O plano de saúde está pela hora da morte. A carne está com um preço absurdo. Não dá pra comprar mais nada. Eu apenas concordo fazendo um grunhido sem sentido. Esqueceu de falar das varizes. No fim diz adeus. Antes de desligar: te amo.

Mamãe é a única que liga pra mim. Eu que não ligo pra nada.
Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial

0 comentários:

Postar um comentário

Copyright © Boletim Afrocarioca | Design: Agência Mocho