terça-feira, 22 de setembro de 2015

DOIS LADOS




“Pra quê voltar se já sei o que não vou encontrar?” Abrir a porta do apartamento ao voltar do trabalho tinha sido seu pesadelo durante todo o dia. Ela não estaria mais lá. A despedida tinha acontecido naquela manhã, antes que ele saísse. “Nem teve a compaixão de partir quando eu não estivesse”, pensou. Melhor assim. Talvez pensasse que tudo continuaria igual, pois não teria havido despedida. O corte, a ruptura crua e clara era dolorosa, porém traria o alento da verdade. Encarar a realidade é melhor do que os prolongamentos angustiantes da ilusão.
Marcelo não era o melhor homem com quem Luísa havia estado. Não se assemelhava nem a Alberto em seus melhores tempos, mas tinha no olhar um desejo por ela, que a fazia sentir quando aos 20 anos de idade, passava de propósito pelos corredores da faculdade em seus vestidos curtos de tecido leve e solto sobre a pele morena e sentia cada olhar masculino a desviar-se de qualquer tarefa para apreciá-la. Aqueles olhares apagavam a adolescência sem graça, quando ainda magra, só tinha a atenção de um homem que quisesse se aproximar de suas amigas. O amante agora a fazia sentir o eriçar de pêlos na nuca da juventude. Sua feminilidade reacendida pelo retorno da auto-apreciação.
Alberto era solar, mas só via noite a sua frente. Lembrava do pedido de namoro. Pedido que ela recusou, mas que dois dias depois aceitou. Pensava no primeiro “eu te amo”, mesmo que hesitante, porém sincero, dito enquanto faziam sexo bêbados. A declaração teve que ser feita novamente no dia seguinte para que ela aceitasse o efeito. Não queria que parecesse tudo desculpa da bebida. Disse “eu te amo” a ele também e sentiu o coração acelerado enquanto o abraçava com a cabeça recostada sobre o peito dele.
Luísa sentia uma mão tocar sua perna e pressionar levemente a coxa direita, um arrepio que vinha da base da coluna à nuca. De olhos fechados se permitia sentir aquilo sem quebrar qualquer encanto. As buzinas a estourar seus tímpanos a fizeram voltar. Estava dentro do carro. Sinal verde e ela a relembrar a tarde anterior.
De tão só se perdia de si. Como um cego novato a tatear o mundo no escuro em busca de algo que reconheça. Sem rumo, reaprendendo a caminhar sozinho. Vivia com ela e para ela. Esquecera como tinha sido antes. Existia antes? Acomodou-se na tranqüilidade do matrimônio. Emprego estável, casa bonita e quitada, carro novo, mulher que amava. Tudo corria sem os sobressaltos da juventude. Alberto gozava a aposentadoria das aventuras aos 43 anos. Agora se perguntava onde o barco tinha mudado de percurso. Onde?
Ele saiu do banheiro e veio se deitar. Luísa lia um livro de Martha Medeiros que ganhara da irmã. Ele se cobriu com o lençol, deu um beijo em sua cabeça e virou o corpo, como de costume, para a mesa de cabeceira. Ela veio por suas costas, passou a mão ainda gelada pelo ar-condicionado nas costas dele e se aproximou, como que para aquecer-se. Era seu homem. Estivera sempre ali e ela sabia que poderia contar sempre com ele. Alberto virou e delicadamente começou a beijar a esposa. Há duas semanas não faziam amor. O cansaço, um programa interessante na TV, a vontade de ler um livro, uma indisposição, um desencontro, a TPM, a menstruação. Motivos de um lado e de outro que de escasso, ao longo dos anos, viraram rotina. Nada que percebessem de imediato. Eram as circunstâncias. Algo no meio do sexo a fez estalar os dedos mentalmente. Como uma chave elétrica a desligar toda a energia da casa. Algo apagou e ela não sabia onde poderia reparar o defeito. Foram até o final sem que ele visse alguma mudança. Recostaram-se para dormir e ela permaneceu insone. Foram 5 meses até que ela aceitasse e tomasse alguma atitude, mesmo que naquela tranqüila noite, todas as luzes dentro dela já estivessem queimadas.
Ele alimentou por anos a esperança de ser pai. Queria levar o filho aos jogos do Fluminense, queria ensiná-lo a andar de bicicleta, ajudá-lo no dever da escola, contar histórias antes de dormir. Não aconteceu. Se havia algum problema com ele ou ela, não quiseram saber. Jogar a culpa em um dos dois poderia ser o início de uma decepção velada, porém persistente.
Foi ao ginecologista sem avisar o marido. Estava atrasada há duas semanas. Não quis contar antes para não criar expectativas. Dentro de si ela tinha certeza que residia o maior amor de sua vida. Grávida aos 39 anos. Pelos cálculos, Felipe nasceria em novembro, bem perto do aniversário da avó paterna. Sucumbiu com apenas 2 meses de gestação. Alberto nunca mais foi o mesmo.
Ela não o alcançava mais. A perda tinha sido muito maior para ela, claro, mas sofreu em silêncio. Trabalhou mais, estudou espanhol, viajou para todos os congressos e simpósios que podia. Via o marido se afundar no próprio abismo, sem gosto, viço, descrente de tudo. Demorou a voltar ao normal.
Era domingo e Alberto não estava na cama. Luísa estranhou a ausência dele. Levantou e seguiu os ruídos que vinham da cozinha. Ele preparava o café-da-manhã e sorriu abertamente ao ver a mulher ainda com os olhos inchados e a boca seca. O dia nublado daquele outono frio em Porto Alegre era iluminado por ele, que acordara de um pesadelo de 11 meses. Foi assim de um dia para o outro. Reacendeu.
Luísa já não tinha mais as portas abertas. Existia amor nela, no entanto nada que o permitisse entrar novamente. Marcelo surgiu meio que por acaso. Malhavam na mesma academia. Trabalhavam perto. O encontro após o expediente era natural. Da sala de musculação para o motel, esse foi o caminho. Ela começou achando que seria apenas uma aventura para reviver um pouco do prazer próprio, da auto-estima. Se acostumou com as mentiras e passou a ser fria. Perceber-se indiferente à quase tudo a fez entrar no apartamento na noite de 18 de julho e dizer que partiria no dia seguinte. O marido, talvez em estado de choque, não reagiu. Ela ansiava por arroubos de desespero, uma briga antológica e uma reconciliação avassaladora. Teve o olhar perdido de um incrédulo.
Viram-se 3 vezes mais apenas. Todas referentes ao divórcio. Alberto mudou-se para o Espírito Santo afim de nunca mais retornar à Porto Alegre. Luísa ficou mais 3 meses com Marcelo e só aos 50 conheceu o homem que a acompanharia até a morte. Aos 72 anos uma prima comentou quase sem querer que soubera da morte de Alberto. Ele voltara a viver em Porto Alegre, na casa que era de sua família, havia 2 anos. O semblante de Luísa mudou profundamente. Não soube descrever o que sentira.
Sentiu saudade do café-da-manhã aos domingos.









IDIOTA





O celular vibra sobre a cama, mas não se faz perceber. Durmo profundamente envolto em sonhos que me levam a cenários desconhecidos, embora eu reconheça perfeitamente o personagem que interage comigo. Ao acordar vejo o aparelho ao meu lado. Provavelmente adormeci enquanto lia algum artigo ou mensagem. Dormimos lado a lado. Eu e o smartphone. Antes de me levantar clico despretensiosamente o botão que faz a tela acender. O ícone que me chama a atenção mostra que por duas vezes alguém tentou entrar em contato comigo e não foi bem sucedido. Duas vezes. Duas chances que deixei passar. Era a mesma pessoa que invadira meus sonhos. Coincidência? Penso nela todos os dias em diversas ocasiões. Se passo por um lugar onde costumávamos ir, se preparo um prato que ela gostaria de experimentar, se a imagino com outro e nada posso fazer. É assim desde que nos separamos. Não era de se espantar que eu sonhasse com ela. O inusitado estava em receber ligações às 1h34 e 1h37 de uma quinta-feira. O que a levou a tal atitude? Não estaria mais namorando? Estaria infeliz? Mas porque recorreu justo a mim?
A diferença de três minutos era uma característica dela. Quando não conseguia falar comigo na primeira tentativa, esperava passar esse tempo e tornava a ligar. Ela sabia que eu dificilmente passava esse tempo sem olhar a tela do celular. Maldito vício. Às vezes eu não atendia só para testar sua persistência. Era bom saber que alguém realmente desejava a minha atenção. Alguém realmente me desejava.
Pensamentos que me ocorreram em apenas alguns segundos. Hesitei em retornar imediatamente. Tarefa árdua para um cara ansioso como eu. Aguentei 7 minutos. Para ela não faria diferença. Para mim, sim. Um jogo em que somente eu sabia as regras.
Regra da vida: todo apaixonado é um idiota.
Se você não distorce tudo que ela fala, pensando ser algum sinal de que ela te quer; se você não corre toda vez que ela te chama; se você não passa parte do seu dia revisando na memória todos os momentos em que estiveram juntos, desculpa amigo, você não está apaixonado.
Eu me sentia feminino até certo ponto, mesmo que nunca tenha sentido nada por homens. Era no sentimento que me aproximava delas. Gostava de me abrir, de debater. Tinha carência, a falta de algo que não sabia explicar. Ao mesmo tempo nunca perdi o senso de liberdade masculina, o ímpeto para aventuras que eram só minhas. Afinal, quem definiria os gêneros hoje em dia? Alguém ousa?
Quem é o provedor? Quem consola e quem é consolado? Quem inicia a DR? Quem toma a iniciativa do sexo? Entre nós a resposta sempre seria: qualquer um dos dois.
Não me surpreenderia se um dia ela saísse na bateria do Salgueiro. Mentira. Me surpreenderia, mas ela poderia, entende?
Eu queria que todos também se apaixonassem por ela, o que não era difícil. Fazia parte do prazer de ter escolhido a “pessoa certa”. Como ficar imune àquele jeito meigo e atrapalhado? Seu sorriso era capaz de interromper uma guerra por dias.
Ela era a melhor amiga que já tive. Pude abrir meu esgoto e despejar, não sem o mínimo de vergonha, as angústias, medos e desvios de uma personalidade forjada a ferro quente. E ela me aceitou daquele jeito torto.
O telefone tocou 4 vezes até que ela atendesse. A voz rouca de sono me dizia “por que não liga mais tarde?”. Maldita ansiedade. Meu tempo parece correr mais rápido que o ritmo do mundo. Quero tudo agora, pronto, não depois. Droga!
- Liguei em má hora, né?
-Não. Eu já devia ter levantado. Tava de preguiça na cama.
-E o trabalho?
-Me dei a manhã de folga.
-Hum.
-Ele me largou de novo, aquele filho da puta.
Bela forma de iniciar uma conversa. Fiquei em silêncio.
-Você ainda está aí? Desculpa o palavrão.
-Nada.
-Eu não devia estar falando isso pra você.
-Sem problemas. Somos amigos, não somos? Antes de tudo, amigos.
-Que bom saber disso. Vai fazer alguma coisa hoje à noite?
-Não sei. Que tal uma cerva na Praça São Salvador? – eu disse.
-Ótimo. Te ligo mais tarde pra confirmar.
Ela não ligou. Eu quis mandar mensagem, perguntar o que havia acontecido. Eu sabia. Ele voltou com um papo manso. Ela aceitou após algum protesto. Cada um com sua carência. Fiquei com a minha, eles com as que lhes cabiam. Não fui à praça, não fui a canto algum.
Quando outra crise lhe batesse a porta, talvez voltasse a se lembrar do ombro que estava disposto a abrigá-la. Sem rancores.
Um apaixonado é antes de tudo um idiota.



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