terça-feira, 22 de dezembro de 2015

CONFRATERNIZAÇÃO






Fim de ano e os funcionários resolviam se encontrar para a tradicional confraternização. Não era nada muito elaborado. Normalmente Arnaldo, o cara do almoxarifado e sambista de plantão, indicava um bar na cidade onde ele e seu grupo de samba-de-raiz iriam tocar e lá se fazia a reunião. Passavam o ano trocando apenas formalidades de trabalho. Afinidades existiam aqui e ali, mas nada que justificasse um convite para ser padrinho do filho que vai nascer, férias conjuntas em uma praia no nordeste ou para ser fiador no aluguel do apartamento novo. Eram todos colegas de trabalho e ponto. Em meio a intimidade forçada que se estabelecia nesses encontros eles até que se divertiam. Enquanto Arnaldo se esforçava no tantam, Maurício era o animador. Aquele cara que conta piadas, imita o chefe, que é claro, não está presente e puxa a primeira pessoa para dançar, criando uma pista de dança no meio do bar. Vanessa, a servente que faz o melhor café do Rio de Janeiro na opinião de Vera do arquivo, fumante desde os 15 anos e frequentadora assídua do café do corredor,  é a responsável por organizar o amigo-oculto: faz os papéis com os nomes e a lista de presentes desejados. Régis e Carlos Alberto da informática não eram muito animados, mas sempre compareciam. Os nerds do trabalho eram bebuns convictos. Sabiam toda a história da cerveja, com que comida combinavam cada tipo e se orgulhavam de contar cada detalhe. Sobre os outros não se tinha muito o que falar. Estagiários(e principalmente estagiárias) cheios de juventude, que destoavam do resto, se divertiam em seu mundinho particular, mas que no fim das contas animavam o clima. Tinham os tímidos, as recatas que depois de duas doses de caipirinha já se soltavam e cantavam cada refrão do Arlindo Cruz ´Madureiraaaaaaaa, lalaiá...´.

Tudo corria normal como sempre. Assim como nos anos anteriores, Camila do jurídico não estava. Fora casada por 7 anos com um executivo bem sucedido e ciumento. Não era de falar muito. Reservada por opção e convicção. Não sabíamos, mas a recém-separada descobrira o romance de 2 anos do ex-marido com o cunhado. Sim, cunhadO. Não sabia explicar se perder o marido para outro homem era melhor do que para uma piriguete mais nova, o que seria mais fácil de esperar.

Ao entrar no salão naquela noite fez-se um pequeno silêncio, que talvez não tenha sido percebido por todos, mas que invadiu o espaço, que mesmo entre bêbados, conversas animadas e batuques, fez presente como em filmes do velho oeste americano quando o bandido adentrava a porta do bar. O que ela estava fazendo ali?

Vera, a do arquivo, tratou logo de ir até ela oferecer um lugar a seu lado na mesa, como se aquela presença fosse a mais comum do recinto.

Era a mesma Camila de todos os dias, ao passo que era outra. De cabelos soltos, uma roupa que marcava as curvas até então desconhecidas de seu corpo, de lentes de contato, ao contrário do habitual óculos, maquiagem e um sorriso que podia animar qualquer velório.

Acompanhei sua trajetória em câmera lenta até a mesa. Eu estava no balcão do bar pegando um chopp e meio que sem pensar pedi mais um para o barman. Voltei para a mesa com os dois chopps na mão.

O que eu estava fazendo? Nunca tinha trocado mais do que frases feitas com ela. Era o macho alfa que despertava tardiamente dentro de mim?
-Que bom você aqui, aceita?
-Obrigado! Verdade, né? Nunca apareci...resolvi mudar isso.
-Nunca é tarde. Seja bem-vinda! Um brinde?
-Claro! À quê?

Pensei em fazer a brincadeira infame da maldição dos 7 anos de abstinência para os que não brindam, mas achei exagerado para o momento.

-Aos novos laços! Que eles sejam ainda mais fortes no próximo ano!
-A vida nova! - disse ela em tom de libertação de mulher reprimida.
O papo se estendeu pela noite adentro. Muitos chopps se passaram, Vera, a do arquivo, se sentiu isolada por este casal que agora conversava com entusiasmo e foi ter com Vanessa, sua companheira do café. Era estranho como alguém tão interessante estava próxima a mim todos os dias, porém escondida em seu véu de invisibilidade.
Duas da manhã, os garçons já guardavam as cadeiras, indicando que deveríamos sair.
-Vamos tomar uma saideira aqui perto? - disse ela.
-Será que tem algum lugar aberto ainda?
-Na rua aqui do lado tem um bar que só fecha quando o último cliente pede a conta.
-Como você sabe disso?
-Nem me pergunte.

Estávamos bêbados em um estágio avançado, daquele em que falamos tocando um no outro, sempre com os rostos próximos e os olhos de ressaca que dariam inveja a Capitu. Tomamos a saideira.

-Vim de táxi e você?
-Também. Mora aonde?
-Tijuca.
-Andaraí. Quer rachar um táxi? É caminho...
Dentro do carro, em um movimento natural, começamos a nos beijar. O taxista provavelmente desfrutava de uma vista privilegiada, onde parecíamos dois adolescentes afoitos.
-Tijuca. - disse o motorista.
- Deu quanto?
- 25 reais.
-Deixa que eu pago.
Saquei a carteira, paguei a corrida e saltei do carro junto com ela. O Andaraí ficaria para outra hora.
- Quer subir?
- Quero.
- Eu to um pouco enferrujada pra essas coisas. Nem lembro quando foi que outro homem entrou na minha casa.

Respeitamos o elevador que tinha câmeras e entramos no apartamento já tirando a roupa. A madrugada se transformou em manhã e jazimos exaustos sobre a cama em gozo.
Meio-dia e acordei com a luz que invadia a janela do quarto. Ela não estava. A boca seca e a cabeça latejando me lembravam de cada chopp da noite anterior. Isso não me importava muito dentro daquelas circunstâncias. E ela? Estaria na cozinha preparando um café-da-manhã na cama? Levantei, saí do quarto e a procurei na cozinha. Incrível como os apartamentos antigos da Tijuca são enormes. Nem sinal dela em qualquer canto da casa. Na cozinha um papel branco sobre a mesa de madeira:


"Não sei bem como chegamos até aqui... Bebi demais, saí de mim. Para evitar algum constrangimento, fui à rua fazer compras e para te dar tempo de sair sem despedidas.
Peço desculpas se fiz algo de errado. Seja lá o que for, foi um engano.
Ass. Camila"

Na segunda-feira lá estava ela de coque, óculos, saia comportada e blusa fechada.
No café veio até mim e percebendo que estávamos a sós, perguntou:
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, você só deu abrigo a um pobre bêbado.
Terminamos o café em silêncio. Cada um foi para a sua baia e nunca mais se tocou no assunto.


quinta-feira, 5 de novembro de 2015

DESAJUSTADO



Você passa a infância ouvindo que seu cabelo é feio,

Não vê ninguém parecido nos lugares de destaque,

Quando vê, é bandido,

Ou jogador de futebol, mas você não joga bola,

Ou pagodeiro, mas não sabe sambar.

Não é escolhido rei do baile da escola.

Ganha prêmio de simpatia. Sabe que é consolação. Você se esforçou para ser engraçado e simpático para ter espaço e chamar atenção.

Você briga com o próprio cabelo. Alisa, corta curto.

Você ressalta seus traços mais “finos” para se aproximar da paquita (sempre) loira, do herói do filme, do apresentador de tv, do presidente, galã de comercial de margarina, de todas as referências que te apresentaram como boas.

Depois disso tudo, cresce e diz a todos que tem orgulho de ser quem é.

A chave vira, pois algo dentro de você não encaixa.

Se aceitar é mais do que um ato de coragem, é uma postura política.


127 ANOS




As grades das senzalas foram abertas há 127 anos. Os senhores de engenho ainda consideram que estamos lá dentro e nos tratam como se tudo fosse igual. 

Sou filho dos sobreviventes que atravessaram o Atlântico até aqui em porões fétidos. Sou filho de quem apanhou, de quem teve que fugir para não morrer. Sou filho de quem foi jogado à própria sorte após quatro séculos de servidão, na miséria, analfabetos, sem teto, sem terra. Somos sobreviventes porque não há o que possa nos matar. Mesmo na morte carnal permanecemos vivos por aí, pairando em cada canto para lembrar-lhes que o negro é a origem, a luz e a força que gerou isso que hoje chamamos de ser humano. 

Fomos trazidos para o país de mentalidade mais atrasada no mundo. Último local a por fim ao regime escravocrata. Último. Apenas 127 anos se passaram. O Brasil é racista pois não admite que acabou.
Os insultos à Taís Araújo são os mesmos de todos os dias e ainda me causam revolta. O que atingiu Taís, atinge João, Sebastião, Maria, Priscila, Dandara, Francisca, Marcelo, todos negros. Taís Araújo é a representação de que precisamos permanecer firmes nesta luta. Agradeço e admiro a coragem dela em levantar a bandeira e não esmorecer. 


Quem se cala dá voz aos racistas. 


A senzala não é minha casa, você queira ou não. Não foi e nunca será.

JOUT JOUT





Caros representantes do "Orgulho de ser hétero", vocês não me representam, ok?
A tentativa ridícula de retirar páginas feministas do ar é uma atitude covarde. Covarde como o assédio que vocês fazem diariamente a mulheres e meninas todos os dias. Covarde como se esconder na tela do notebook para difamar e ameaçar. Covarde como seus representantes políticos, que se valem da maioria masculina na Câmara para aprovar pautas contra direitos adquiridos das mulheres. 
Para você que se acha tão poderoso por ter nascido com um órgão genital masculino entre as pernas e por isso crê ser superior, apenas uma informação:
Você NÃO é homem. Nem ser humano posso considerar. 
O que é seu está guardado.

JUSTIÇA PRA QUEM?




Um menino de 10 anos morreu no Complexo do Alemão.

O atirador, um policial, estava perto da vítima.

A criança estava de costas.

Os envolvidos foram inocentados. Legítima defesa, dizem.

Esta é a resposta da justiça. Justiça para quem?

A família chora.


Eduardo não vai chorar mais.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

MULHER ANTENADA






Maria tentava escrever uma carta. Em vão. Sentia uma dificuldade extrema de expor sentimentos e opiniões com uma caneta sobre o papel. Não fazia isso desde a infância, pensava. Sua última lembrança de receber algo escrito por alguém remetia a um cartão de natal que ganhou da avó aos 9 anos de idade. O ato de enviar cartas ela não possuía em sua gaveta de memórias remotas. 

Ela é a típica mulher antenada: tem tablet, smartphone, ultrabook e Ipod. Evita comer glúten e lactose. Malha 4 vezes por semana e passa Renew. Posta no Instagram, compartilha no Facebook e está desistindo do Twitter. Fez MBA em Marketing e Pós-graduação em Administração Pública. Lê horóscopo no jornal pela manhã, mas ao fim do dia já não se lembra do que leu e nem se a previsão deu certo. É apenas um hábito. O nome Maria é considerado por ela interessante, por remeter a imagem de uma mulher mais simples, o que contrasta com seu estilo sofisticado. Ela está sozinha em um quarto de hotel em São Paulo. A noite fria que ela abraçou ao caminhar pela Avenida Paulista ficou do lado de fora. No quadrado simples e confortável onde ela se encontra o clima é ameno, acompanhando os gestos delicados dela. 

Escreve, apaga, torna a escrever, desiste por um tempo, retorna, não se agrada com a primeira frase e se desespera por ter tanto a dizer e ver a página vazia. Não encontra palavras e nem o impulso que a levou a tomar aquela atitude. 

Está em São Paulo para uma reunião com investidores estrangeiros que querem comprar uma parte da empresa em que ela trabalha. Chegara um dia antes para preparar alguns detalhes com mais calma e não correr o risco de um vôo atrasado na manhã da reunião. É uma mulher prevenida. 

Duas horas antes, quando sentada na cafeteria da Livraria Cultura, pensava no caos que tomava conta de sua alma até então em equilíbrio. Tinha nas mãos um envelope que prometera abrir apenas quando encontrasse Gabriel, seu namorado há 3 anos. Um oposto que a completava onde ela mais precisava. Um semelhante que a confrontava por saber que a mulher que amava não era perfeita, pois ninguém é. Ela não resistiu e abriu o envelope para saber seu conteúdo. Sentia-se no direito de ter a solidão e a reação que julgasse oportuna, sem o olhar de conhecidos. 

O que diria Virginia Woolf sobre Maria? O que descreveria Simone de Beauvoir? E Lygia Fagundes Telles? Clarice Lispector? Martha Medeiros teria algo de bom a lhe dizer? Suas mentoras não alcançavam a complexidade das suas necessidades e medos. O que era já não sabia mais. Não havia paradigmas a seguir. Agora vivia o presente e o futuro, a certeza e a esperança, seu sossego e a perdição. Estava grávida. 

Seus planos de maternidade remetiam a um tempo de inocência em plena efervescência hormonal da adolescência. Agora aos 29 anos só conseguia pensar na promoção que batalhava para alcançar na empresa, nos lugares do mundo onde ainda gostaria de pisar, na estabilidade financeira e emocional que sentia ainda distante de acordo com os padrões rígidos que estabelecera para si. Ela que era fruto da revolução feminina das décadas de 60 e 70 o qual suas avós e mãe enfrentaram. 

Tentava se olhar por fora. Não a casca que cobria suas vísceras, mas ter um olhar distanciado daquilo que vivia a cada segundo. Achava engraçado perceber a loucura que carregava no olhar distante, o pensamento mergulhado em descobertas, tudo misturado. Era apenas ela e nada mais.

O celular começou a vibrar sobre a mesa onde Maria tentava escrever. Ela queria enviar a carta para Gabriel, carta esta que chegaria depois dela ao Rio de Janeiro. Foi a forma que encontrou para dar a inesperada notícia: ele seria pai. Não tinha coragem de falar para ele diretamente. Pelo menos até aquele momento não encontrava essa força. O celular continuava a vibrar. Gabriel. 

- Alô, amor?
- Oi.
- Tá tudo bem?
- Tudo. Não foi pro futebol hoje?
- Não. Fiquei em casa. Me bateu uma vontade de te falar uma coisa.
- O que? Fala.
- Eu até anotei pra não esquecer: “Nada pode passar sem lágrimas, suor e amor. Se não for pra sentir, prefiro esperar. Meu tempo é feito de intensidades. Só é perfeito para nós o que contiver as qualidades e defeitos certos para aquilo que precisamos aprender. Nossas necessidades são cheias de mistérios.”

- De quem é?
- Meu. 

Em poucas palavras ele conseguiu dizer o que ela precisava escutar. Como se ele já soubesse de tudo o que estava acontecendo dentro dela. Maria conseguiu captar os sentimentos de cada frase. Sem que ele percebesse, ela começou a chorar. Tinha uma vida que precisaria muito dela. E a partir dali saberia que ela também precisaria tanto daquela vida que gerava. Vida alimentando vida. 

- Lindo.
- Ninguém nunca nesse mundo vai entender o que temos. Até porque o que temos não é deste mundo. Não é mesmo? Te amo.

Ficaram ainda um tempo conversando e depois se despediram. As declarações enigmáticas de Gabriel tinham atingido ela em cheio. A mulher antenada agora seria mãe. Foi então invadida por uma felicidade que a deixava inquieta, sem palavras que pudessem descrever com justiça os sentimentos que se faziam presentes. Queria poder inventá-las de acordo com suas crenças e desejos, pois as que aprendera não lhe confortavam. O que sentia não tinha um símbolo, mas era carregado de significados. Era tão bom ser inexplicável!


Ernesto Xavier


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

DESPEDIDAS




Às vezes nos despedimos para sempre de alguém que continuaremos vendo. O adeus ocorre sem palavras em um abraço que talvez nunca será lembrado, em uma tarde de outono na estação do metrô. Este não será o adeus contado pelo casal. Na história ficará marcada a noite de 2 meses depois em que ela o avisou por SMS que tinha deixado as coisas dele na portaria do prédio. Entre tulipas de chopp será contado e recontado. Assim será até quando uma estudante de cinema da PUC, com jeito de menina parisiense o levar a sonhar novamente. O processo se reiniciará até que o porteiro de um outro prédio venha a ser o portador das lembranças de uma outra acabada e confusa história de amor.
O homem se separa e continua encolhido em um canto da cama. Sem que ele saiba, seus braços a procuram na madrugada vazia. Em vão.

Havia amor no riso, assim como havia pesar no beijo. Aquele que seria o último, que faria da despedida um hiato na existência, pois amores deixam vazios que depois são preenchidos com lembranças a serem contadas.

O cheiro dela permanecerá e quando caminhando distraidamente pela Ataulfo de Paiva ele cruzar com uma mulher de igual perfume, terá por ela uma atração repentina que se dissipará rapidamente junto com o aroma que se perde sem deixar rastro.

Na caixa deixada na portaria poucos objetos: uma toalha, um barbeador elétrico, duas cuecas, uma bermuda, um jeans, três camisas, um par de havaianas, um Ray Ban e um porta-retrato com a foto da primeira viagem que fizeram juntos, para Búzios. O que restou da relação cabia em uma caixa que um dia trouxe um aparelho de DVD novo. Ele que foi comprado pelos dois para preencher as noites de chuva no apartamento, com pizza e refrigerante. O aparelho está esquecido. Perdeu o emprego para o Blu Ray.

Não costumamos perceber as despedidas. Quando se diz “adeus” é porque o fim já aconteceu há muito tempo. O momento derradeiro de verdade se faz no último beijo com resquícios de paixão. Por que não paramos por aí? Seguimos...

A mulher certo dia o viu sair do apartamento e teve certeza de que seu namorado nunca mais voltaria. O homem que adentrara dez minutos depois já não era mais o mesmo, era outro com quem ela ainda transaria mais algumas vezes, em um sexo sem sentido na tentativa de resgatá-lo, de fazer o namorado novamente entrar pela porta do apartamento. Já não seria mais possível. Ele tinha ido sem olhar para trás e dizer tchau.


Haverá pesar na despedida. A dor sentida não será mera formalidade de luto e sim a amputação de um pedaço de si. Algo que por um tempo julgou ser imprescindível. E era. Estar ao lado não quer dizer estar junto. Assim como eles, são tantos casais, que de mãos dadas estão mais separados do que qualquer distância poderia fazê-los.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

CRISE



O alarme do celular tocou alto e o som invadiu todo o quarto com aquela música da Marisa Monte: “Ainda bem que agora eu encontrei você...”. A melodia que fora uma de suas prediletas virou pesadelo. Ela agora faz todos os dias uma associação com o momento em que deve começar a se preocupar com o trabalho, o trânsito, a dieta... Nenhuma música resiste quando vira ringtone. Desligou o despertador o mais rápido que pôde depois de tatear por alguns segundos intermináveis a mesa de cabeceira, derrubar o celular no chão e achá-lo ao lado das Havaianas embaixo da cama. Processo que era quase um ritual. Após um minuto de preguiça, deitada, sua consciência foi ficando ativa novamente.

- Hoje é sábado!

Havia se esquecido de desligar o despertador na noite anterior. Uma alegria subiu pelo seu corpo, como na infância quando levantava para ir à escola e a mãe a avisava de que era feriado e ela poderia dormir mais um pouco. Pequenos prazeres nunca perdem a validade.

O celular toca novamente. Mais Marisa Monte. Ela vê a foto e o nome do namorado na tela. A música chega quase ao fim e ela não atende. Caixa postal. Torna a tocar.

- Alô, Ana? Te acordei?
-Não. Já tava acordada há um tempo.
-Te conheço. Com essa voz...
-Fala logo o que você quer, Felipe.
-Desculpa. To ligando pra falar que o vôo vai atrasar meia-hora. Devo chegar 10h30 mais ou menos.
-Putz! Esqueci que você chegava hoje.
-Eu posso pegar um táxi.
-Não precisa. Eu te pego lá.
- Até daqui a pouco. Obrigado. Te amo.

Aquele “te amo” no fim da frase foi como uma facada no peito. Ela chegou a pensar em responder “também te amo”, mas para ela aquilo seria ainda pior. Ela não mentiria para ele, mas para ela. Não tinha certeza sobre o que sentia àquele momento. Ainda amava? Preferiu desligar sem dizer nada.
Tudo começou com uma mensagem suspeita que ela viu no celular dele. Culpou-se por invadir a privacidade do namorado, lendo suas mensagens de texto, vendo quem tinha ligado. Porém uma desconfiança que surgiu sem motivos aparentes a fez ir atrás. E como dizia a mãe: “Quem procura, acha”.

O sms deixava aberta a possibilidade de interpretações. “Está preparado para amanhã? Estou ansiosa. Bjo, Ju.” Ele disse que era uma colega de trabalho nova que estava preocupada com a reunião importante que teriam no dia seguinte. Ela argumentou que uma colega de trabalho não escrevia algo daquele tipo. Ele rebateu dizendo que a menina era nova no escritório e que não tinha ainda a malícia que a maioria poderia ver em suas palavras. A crise estava instaurada. Ele fez juras de amor eterno, disse que nunca faria algo do tipo, que jamais a traiu, blá blá blá. Ela esbravejou, teve nojo, chorou e no fim sentiu uma dormência que beirava a indiferença. Dois dias depois ele viajaria a trabalho. Passaria três dias fora do Rio. “O afastamento vai servir para acalmar os ânimos”, pensou ele. “Vai viajar com a piranha. Aposto.”, pensou ela.

Assim como quando colocaram chinelo, short adidas e camisetas com dizeres em inglês em índios, ela sentia uma estúpida invasão do desconhecido, a perda irrevogável da inocência. Ela era perfeita para ele, sabia que não existia no mundo alguém que o admirasse e tratasse tão bem como ela. Por que ele a trairia? Ela estava feia, desleixada? Seria porque engordou 2 kg desde que começaram a namorar? A primeira reação foi se culpar. Pensava que algo nela estava errado, perdendo a luz.
Nunca se sentiu preparada para algo. Ia de peito aberto ao encontro da ponta da faca. Os ferimentos seriam como palavras escritas em um diário aberto, expostas na internet. Entregou-se completamente a ele, abriu as entranhas como nunca fizera antes. Agora perdia o chão, caindo em um precipício sem fim. Três intermináveis dias em que evitou ao máximo lembrar dele. Em vão. Permanecia atrás de respostas que talvez nunca viessem. Muitas vezes não se busca a solução para os problemas e sim a identificação. Sentir-se retratado pelo outro consola no sentido de que não se está sozinho nesse mundo. É o conforto da compreensão verdadeira de outrem. Porém não tinha coragem de contar a mais ninguém. Mesmo sem a certeza absoluta, algo lhe dizia que era um fato.

Buscou Felipe no aeroporto. O caminho até a casa dele foi feito praticamente em silêncio, interrompido apenas por uma sucessão de xingamentos proferidos contra um motorista de ônibus que deu uma fechada criminosa nela.

Entrar no apartamento dele foi praticamente automático.

Felipe a beijou, ela aceitou, porém logo em seguida o afastou bruscamente. Não conseguiria seguir em frente sem esgotar tudo o que queria dizer e ouvir.

Ela expôs mágoas que remetiam há 3 anos passados. Ele reclamou da forma displicente com que ela tratava a carreira dele. Ela rebateu dizendo que depois de tanto tempo ainda não se sentia à vontade com a família dele e ele era o culpado. Ele alfinetou com insinuações de que o ex-namorado dela se fazia de amigo e só ficava à espera de uma oportunidade. Ela disse que ele não se preocupava mais com as preliminares. Ele disse que ela também. Ela confessou que sentia falta do carinho dele quando terminavam de transar. Ele silenciou. Ela deixou o corpo cair no sofá em um movimento de puro cansaço emocional. Ele um homem de 35 anos. Ela 2 anos mais nova. Ambos exaustos de términos, começos, solteirices, novos planos, frustrações e ciclos que se repetiam infinitamente. Resquícios naturais deixados pela juventude.

Ele estava chorando. Ela tinha visto isso acontecer apenas uma vez. Levantou-se e foi abraçá-lo.

Só é crise quando ainda existe amor. O resto é desesperança.



Ernesto Xavier

domingo, 18 de outubro de 2015

O HOMEM MATEMÁTICO



O homem em seus devaneios quase matemáticos calcula os passos, cada palavra a ser dita, respostas e variáveis para o diálogo, traça a parábola que o levará até ela, se diminui, depois bebe e se multiplica de forma exagerada, na tentativa da coragem inalcançável na sobriedade.

Encostado no balcão ele fita a presa com um olhar discreto. Apenas para as análises preliminares. Sente algo diferente, como se pudesse imaginar claramente que futuro teriam juntos: a cor da casa e do carro, o nome dos filhos, a cidade preferida nas férias, a música que tocaria na entrada dela no casamento, sua comida favorita e quem sabe até qual filme do Woody Allen ela gosta mais. 

Suposições que o homem matemático faz enquanto calcula suas possibilidades, probabilidades.
O homem matemático é capaz de se apaixonar várias vezes ao dia. Seu prazer não está na conquista e sim nas fantasias criadas em alguém que vê em um vagão do metrô, numa sessão de cinema francês à tarde em Botafogo ou em um chopp com os amigos em Santa Teresa. Não há hora ou lugar. São trocas de olhares que ele vai colecionando em sua estante emocional de relacionamentos nunca consumados. Juras de amor eterno que não foram ditas, rompantes de ciúme que jamais chamarão a atenção dos transeuntes, demonstrações de afeto que não serão invejadas pelas amigas dela, pois nunca aconteceram.

A vida do homem matemático(ou quase) é bem agitada. Ele não terá histórias reais para contar na mesa do bar, porém dirá com profundo pesar que deixou a mulher de seus sonhos escapar num ponto de ônibus, quando ela ao entrar em seu coletivo olhou sorrateiramente para trás, cruzou seus olhos com os dele e fez daquele segundo em silêncio a mais bela poesia que ele já ouvira. Ela partiu Barata Ribeiro abaixo enquanto ele se postava impávido vendo a perfeita mãe para seus filhos partir sem deixar um número ou contato do facebook. Talvez se o tivesse, descobriria que eles tinham em comum uma amiga que estudou com ele no primário do Andrews e também um fortão que fez natação com ele no Fluminense há 4 anos passados. Fortão que costumeiramente comentava as fotos dela. Seria alguma espécie de ficante sazonal? O homem matemático não mensurava o tamanho da decepção que teria com uma confirmação dessas. Resolveu nem pensar. E como poderia? Não tinham trocado nem um “oi”.

Os amigos do homem matemático gostam dele assim mesmo.  Já tentaram mostrar para ele que os relacionamentos são mais humanos ou biológicos do que exatos. Mas ele insistia em dizer que preferia encontrar o valor do seu “x” dentre tantas variáveis ao invés de ser enganado por prosopopéias ou versos alexandrinos. Vivia o rigor de suas fórmulas, sabia projetar o resultado de cada relacionamento dos amigos, embora não tivesse feito o mesmo em sua vida.


O tempo também passará para o homem matemático. Assim talvez veja que a direção a seguir não será uma questão de vetores e que no amor, para multiplicar é preciso em primeiro lugar dividir. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

MEA CULPA



Mulher,

Quero pedir desculpas. Não que eu possa responder por outros, mas me sinto na obrigação de fazê-lo. Falo por mim. Portanto, escreverei na primeira pessoa.

Por minha causa foi necessária a criação de vagões exclusivos para que você pudesse viajar sem o temor de ser abusada sexualmente, empurrada, ameaçada.

Por minha culpa você tem medo de andar sozinha à noite. Não precisa mais temer a roupa que irá usar. Não mais vou achar que está me provocando e nem tentarei estupra-la ou falarei frases constrangedoras como:
“Te chupava todinha”, “Essa deve enlouquecer na cama”, “Quer segurar aqui?”, “Gostosa”, “Safada” e outras do tipo.

Por minha culpa e consentimento de amigos, os seus salários são inferiores ao meu. Perdão. Também não usarei a desculpa de que tenho que trabalhar mais enquanto você está de Licença Maternidade. Você fica exausta, eu não te ajudo como deveria e ainda faço pouco caso. Não são férias, eu sei.

Sei que sou culpado pela morte de muitas de vocês. Não mais morrerão por minhas mãos. Nem precisa se sentir intimidada por me denunciar. Assumirei a culpa por meus atos.

Por minha total culpa você não pôde escolher o que fazer com seu corpo. Não te incriminarei se quiser ou precisar abortar. Assumo que o crime está nas inúmeras vezes que te abandonei ao saber que estavas grávida. Joguei sempre em ti a responsabilidade total dos filhos. Não posso medir o tamanho do trauma por colaborar para que você passasse por isso. Estarei ao seu lado seja lá qual for a decisão. Prometo.

Enquanto você varria a casa, eu descansava. Você estava lavando louça e eu dedicava mais tempo aos estudos. Você passava roupa e eu via o noticiário. Desigual, não? Eu criei essa cultura de propósito. Assumo que agi errado.

Você escolhe se quer fazer cesariana ou parto normal. Também não vou te expulsar ou assediar se quiser amamentar em locais públicos. É um direito seu que eu tirei. Fiz parecer que você deveria se envergonhar por isso.

Eu te impus uma luta estressante contra seu próprio corpo. Ao mesmo tempo exaltei as minhas imperfeições como se fossem o resultado de uma vida gloriosa. Esqueça disso. Sinta-se bem e bonita como você é. Culpa minha, eu sei.

Quem sou eu para opinar sobre assuntos totalmente seus? Não passo os seus medos, não menstruo e nem fico grávido, não tenho tantas alterações hormonais, não sou assediado em cada esquina, não sou pressionado a trabalhar, cuidar dos filhos, da casa e ainda estar bonita e disposta para transar.

Por minha causa você é taxada de piranha, puta e galinha quando fica com alguém e eu sou festejado por fazer sexo com várias.

Também por minha conta criaram material pornô voltado apenas para o público masculino, sempre subjugando as mulheres.

Sei que durante muito tempo eu disse que vocês não eram capazes, não chegariam longe, diminuí a autoestima e humilhei quando quis. Sei disso. Desculpa.

Eu ajudei a criar mecanismos que dificultassem sua ascensão em empresas, na política e até na arte.

Joguei a culpa em você por dirigir mal, mesmo sabendo que 80% dos acidentes com ou sem vítimas envolvem motoristas do sexo masculino.

Por minha causa tratamos as mulheres transexuais como uma sub-raça. Não só isso. Matamos, batemos, não damos a elas acesso à educação e trabalho.

Eu ajudei a te fazer esquecer ou ignorar o sentido do dia 8 de março. Aproximadamente 130 mulheres morreram carbonizadas naquela fábrica, em Nova York, em 1857, apenas porque reivindicavam igualdade e melhores condições de trabalho. Maquiei esse dia apenas te dando flores.

Sei que é fácil pedir desculpas depois de tanto tempo tratando você assim, mas queria ao menos estabelecer uma relação mais saudável a partir de agora. Você tem todos os motivos para não aceitar ou acreditar no meu pedido de perdão. Errei durante muito tempo. É difícil confiar em mim.

É fácil estar no papel do opressor, já que posso desqualificar o que julgo estar abaixo de mim e imponho minha vontade pela força física, mental ou social. Faço isso há milênios. Literalmente.

Empodere-se.  Tentei tirar seu poder, mas ele é nato.

Não vou mais desmerecer, nem ridicularizar sua luta. Ela existe porque eu existo e ainda sou como sou.

Minhas sinceras desculpas,

Ernesto Xavier



. 10 de outubro - Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher





segunda-feira, 5 de outubro de 2015

CANTO DE DOR



Ao sair pela madrugada fria de julho a rua era só silêncio. As luzes amarelas mostravam o caminho a percorrer. Para trás deixava parte de si. Suas partes mais importantes, na verdade. Doía deixar duas crianças sozinhas. Uma menina de 12 e um garoto de 8 anos. A mais velha tinha a responsabilidade de cuidar do menor. Rosângela, ou Rose, como era conhecida em Antares, onde vivia e no trabalho, olhava apenas para frente, pois se fraquejasse desistia e voltava para o aconchego deles.

O ex-marido tinha sido preso por roubo há 4 anos. Ela se sentia aliviada porque não apanhava mais. Denunciar, em sua cabeça, seria o mesmo que assinar a própria sentença. Quem protege uma mulher negra na favela? Quem iria mantê-lo afastado dela e das crianças?

O horizonte que ficava azul aos poucos a levava a pensamentos distantes. O que a teria levado até ali? Por que precisava criar os filhos dos outros para que pudesse dar o de comer para os seus próprios filhos? Quem criava os seus? Deixaria para eles o mesmo legado de desesperança? Mantinha-se firme para que não a vissem tropeçar. Fazia questão de não dormir no trabalho para ter ao menos alguns instantes com eles. Queria fazer alguma diferença.

Mantinha contato constante pelo celular com Luísa, a filha mais velha, para saber como estavam. Seu corpo estava longe, mas a alma cercava os filhos para protege-los.

O que seria ter liberdade? Não sabia, pois tudo a sua volta lhe impunha limites quase intransponíveis. Não podia ir onde quisesse. Não tinha estudo para mudar ou crescer no trabalho. Não tinha dinheiro. Não tinha mais forças para sonhar. Se sentia presa ao chão para sempre. Seu maior medo era deixar essa herança para os filhos.

O seu dia era marcado pelo pensamento distante, o trabalho incessante, o carinho que tinha pelo filho dos patrões.

No ônibus ao retornar ligou o rádio no celular como de costume. Conseguiu um espaço em pé após uma disputa corporal entre homens e mulheres. Vencia o mais forte. Atrás dela um rapaz que aparentava 25 anos fazia movimentos na tentativa de sentir seu corpo. Ela gritou. Todo o ônibus olhou em sua direção. O rapaz desistiu e fingiu que nada tinha acontecido. Era a selva. Ela era a leoa defendendo o alimento dos filhotes. Conseguiu ouvir no noticiário que um confronto entre policiais e traficantes tinha ocorrido na comunidade onde vivia. Não chegava a ser uma novidade, mas nada tirava o aperto de seu peito. A preocupação com quem havia deixado em casa. Segurava o terço dentro da bolsa e pedia a Nossa Senhora das Dores que protegesse os seus.

Ouviram os primeiros tiros longe dali. Mesmo assim se puseram deitados no chão. Aos poucos os estampidos ressoavam cada vez mais próximos. O barulho de motos passando em disparada chamaram a atenção do garoto. Levantou-se para vê-las passar. Luísa não teve tempo de reagir. Patrick recebeu o impacto no peito e caiu no chão. O tiro havia atravessado a janela. Fulminante. Por cerca de 10 minutos ninguém sabia o que tinha acontecido dentro daquela casa. Todos estavam escondidos dentro das suas e pouco poderiam saber sobre o que passava do lado de fora. Os sons de tiro cessaram. As sirenes das viaturas estavam distantes. O grito de horror e desespero de Luísa invadiu todas as casas ao redor.

Na favela nenhuma bala é perdida.

Rose apertava o passo para chegar em casa. Queria ter estado perto dos pequenos quando a guerra teve lugar. Ela não via mais nada. Tentava abrir espaço na multidão. Aos solavancos passava. Todos parados a olhar a tragédia. O faziam por curiosidade, pena, desespero, alívio. Assistir as mazelas humanas de fora dá a dúbia sensação de pertencimento, por saber que aquela é também sua realidade, mas ao mesmo tempo alívio, pois sabe-se que ao menos dessa vez você não foi o atingido. Por mais que muitos ali sentissem o acontecido, só ela teria a real noção de sua dor. Apenas ela deixaria de dormir seguidas noites em prantos. Ela se culparia. Ela carregaria o peso da ausência, a opressão do vazio.

- É minha casa. Por que estão na frente da minha casa? Deixem eu ver meus filhos! Meus filhos. Meus filhos.

Parou.

O que estava acontecendo? Por que tanta gente? Por que os policiais na sua porta?

Tentaram impedir que entrasse.

- É minha casa!
- Mãe!!! – gritava Luísa lá de dentro. Abriram para que a mãe passasse.

Viu o pano branco sobre o corpo caído. Acreditar em que? Se apegar a quem? Onde consolar-se?
Um grito sem som. Olhar perdido. O silêncio de sua dor inundava a favela.

Queria traze-lo de volta para sua barriga, onde ele estaria sempre protegido. Ninava o corpo inerte e cantava uma música de dormir inteligível. Era como uma oração própria, só compreendida por eles. Balançava para frente e para trás. Enquanto isso os abutres empoleiravam-se na janela para ver a cena. Tiravam fotos para colocar na capa do jornal no dia seguinte. Mais uma história para a conta.

Suas mãos, de parcas forças, já haviam carregado bebês alheios, mexido panelas, segurado enxadas e agora tentavam enxugar seu desespero.

Deveria ser proibido mãe enterrar filho.





Ernesto Xavier

terça-feira, 22 de setembro de 2015

DOIS LADOS




“Pra quê voltar se já sei o que não vou encontrar?” Abrir a porta do apartamento ao voltar do trabalho tinha sido seu pesadelo durante todo o dia. Ela não estaria mais lá. A despedida tinha acontecido naquela manhã, antes que ele saísse. “Nem teve a compaixão de partir quando eu não estivesse”, pensou. Melhor assim. Talvez pensasse que tudo continuaria igual, pois não teria havido despedida. O corte, a ruptura crua e clara era dolorosa, porém traria o alento da verdade. Encarar a realidade é melhor do que os prolongamentos angustiantes da ilusão.
Marcelo não era o melhor homem com quem Luísa havia estado. Não se assemelhava nem a Alberto em seus melhores tempos, mas tinha no olhar um desejo por ela, que a fazia sentir quando aos 20 anos de idade, passava de propósito pelos corredores da faculdade em seus vestidos curtos de tecido leve e solto sobre a pele morena e sentia cada olhar masculino a desviar-se de qualquer tarefa para apreciá-la. Aqueles olhares apagavam a adolescência sem graça, quando ainda magra, só tinha a atenção de um homem que quisesse se aproximar de suas amigas. O amante agora a fazia sentir o eriçar de pêlos na nuca da juventude. Sua feminilidade reacendida pelo retorno da auto-apreciação.
Alberto era solar, mas só via noite a sua frente. Lembrava do pedido de namoro. Pedido que ela recusou, mas que dois dias depois aceitou. Pensava no primeiro “eu te amo”, mesmo que hesitante, porém sincero, dito enquanto faziam sexo bêbados. A declaração teve que ser feita novamente no dia seguinte para que ela aceitasse o efeito. Não queria que parecesse tudo desculpa da bebida. Disse “eu te amo” a ele também e sentiu o coração acelerado enquanto o abraçava com a cabeça recostada sobre o peito dele.
Luísa sentia uma mão tocar sua perna e pressionar levemente a coxa direita, um arrepio que vinha da base da coluna à nuca. De olhos fechados se permitia sentir aquilo sem quebrar qualquer encanto. As buzinas a estourar seus tímpanos a fizeram voltar. Estava dentro do carro. Sinal verde e ela a relembrar a tarde anterior.
De tão só se perdia de si. Como um cego novato a tatear o mundo no escuro em busca de algo que reconheça. Sem rumo, reaprendendo a caminhar sozinho. Vivia com ela e para ela. Esquecera como tinha sido antes. Existia antes? Acomodou-se na tranqüilidade do matrimônio. Emprego estável, casa bonita e quitada, carro novo, mulher que amava. Tudo corria sem os sobressaltos da juventude. Alberto gozava a aposentadoria das aventuras aos 43 anos. Agora se perguntava onde o barco tinha mudado de percurso. Onde?
Ele saiu do banheiro e veio se deitar. Luísa lia um livro de Martha Medeiros que ganhara da irmã. Ele se cobriu com o lençol, deu um beijo em sua cabeça e virou o corpo, como de costume, para a mesa de cabeceira. Ela veio por suas costas, passou a mão ainda gelada pelo ar-condicionado nas costas dele e se aproximou, como que para aquecer-se. Era seu homem. Estivera sempre ali e ela sabia que poderia contar sempre com ele. Alberto virou e delicadamente começou a beijar a esposa. Há duas semanas não faziam amor. O cansaço, um programa interessante na TV, a vontade de ler um livro, uma indisposição, um desencontro, a TPM, a menstruação. Motivos de um lado e de outro que de escasso, ao longo dos anos, viraram rotina. Nada que percebessem de imediato. Eram as circunstâncias. Algo no meio do sexo a fez estalar os dedos mentalmente. Como uma chave elétrica a desligar toda a energia da casa. Algo apagou e ela não sabia onde poderia reparar o defeito. Foram até o final sem que ele visse alguma mudança. Recostaram-se para dormir e ela permaneceu insone. Foram 5 meses até que ela aceitasse e tomasse alguma atitude, mesmo que naquela tranqüila noite, todas as luzes dentro dela já estivessem queimadas.
Ele alimentou por anos a esperança de ser pai. Queria levar o filho aos jogos do Fluminense, queria ensiná-lo a andar de bicicleta, ajudá-lo no dever da escola, contar histórias antes de dormir. Não aconteceu. Se havia algum problema com ele ou ela, não quiseram saber. Jogar a culpa em um dos dois poderia ser o início de uma decepção velada, porém persistente.
Foi ao ginecologista sem avisar o marido. Estava atrasada há duas semanas. Não quis contar antes para não criar expectativas. Dentro de si ela tinha certeza que residia o maior amor de sua vida. Grávida aos 39 anos. Pelos cálculos, Felipe nasceria em novembro, bem perto do aniversário da avó paterna. Sucumbiu com apenas 2 meses de gestação. Alberto nunca mais foi o mesmo.
Ela não o alcançava mais. A perda tinha sido muito maior para ela, claro, mas sofreu em silêncio. Trabalhou mais, estudou espanhol, viajou para todos os congressos e simpósios que podia. Via o marido se afundar no próprio abismo, sem gosto, viço, descrente de tudo. Demorou a voltar ao normal.
Era domingo e Alberto não estava na cama. Luísa estranhou a ausência dele. Levantou e seguiu os ruídos que vinham da cozinha. Ele preparava o café-da-manhã e sorriu abertamente ao ver a mulher ainda com os olhos inchados e a boca seca. O dia nublado daquele outono frio em Porto Alegre era iluminado por ele, que acordara de um pesadelo de 11 meses. Foi assim de um dia para o outro. Reacendeu.
Luísa já não tinha mais as portas abertas. Existia amor nela, no entanto nada que o permitisse entrar novamente. Marcelo surgiu meio que por acaso. Malhavam na mesma academia. Trabalhavam perto. O encontro após o expediente era natural. Da sala de musculação para o motel, esse foi o caminho. Ela começou achando que seria apenas uma aventura para reviver um pouco do prazer próprio, da auto-estima. Se acostumou com as mentiras e passou a ser fria. Perceber-se indiferente à quase tudo a fez entrar no apartamento na noite de 18 de julho e dizer que partiria no dia seguinte. O marido, talvez em estado de choque, não reagiu. Ela ansiava por arroubos de desespero, uma briga antológica e uma reconciliação avassaladora. Teve o olhar perdido de um incrédulo.
Viram-se 3 vezes mais apenas. Todas referentes ao divórcio. Alberto mudou-se para o Espírito Santo afim de nunca mais retornar à Porto Alegre. Luísa ficou mais 3 meses com Marcelo e só aos 50 conheceu o homem que a acompanharia até a morte. Aos 72 anos uma prima comentou quase sem querer que soubera da morte de Alberto. Ele voltara a viver em Porto Alegre, na casa que era de sua família, havia 2 anos. O semblante de Luísa mudou profundamente. Não soube descrever o que sentira.
Sentiu saudade do café-da-manhã aos domingos.









IDIOTA





O celular vibra sobre a cama, mas não se faz perceber. Durmo profundamente envolto em sonhos que me levam a cenários desconhecidos, embora eu reconheça perfeitamente o personagem que interage comigo. Ao acordar vejo o aparelho ao meu lado. Provavelmente adormeci enquanto lia algum artigo ou mensagem. Dormimos lado a lado. Eu e o smartphone. Antes de me levantar clico despretensiosamente o botão que faz a tela acender. O ícone que me chama a atenção mostra que por duas vezes alguém tentou entrar em contato comigo e não foi bem sucedido. Duas vezes. Duas chances que deixei passar. Era a mesma pessoa que invadira meus sonhos. Coincidência? Penso nela todos os dias em diversas ocasiões. Se passo por um lugar onde costumávamos ir, se preparo um prato que ela gostaria de experimentar, se a imagino com outro e nada posso fazer. É assim desde que nos separamos. Não era de se espantar que eu sonhasse com ela. O inusitado estava em receber ligações às 1h34 e 1h37 de uma quinta-feira. O que a levou a tal atitude? Não estaria mais namorando? Estaria infeliz? Mas porque recorreu justo a mim?
A diferença de três minutos era uma característica dela. Quando não conseguia falar comigo na primeira tentativa, esperava passar esse tempo e tornava a ligar. Ela sabia que eu dificilmente passava esse tempo sem olhar a tela do celular. Maldito vício. Às vezes eu não atendia só para testar sua persistência. Era bom saber que alguém realmente desejava a minha atenção. Alguém realmente me desejava.
Pensamentos que me ocorreram em apenas alguns segundos. Hesitei em retornar imediatamente. Tarefa árdua para um cara ansioso como eu. Aguentei 7 minutos. Para ela não faria diferença. Para mim, sim. Um jogo em que somente eu sabia as regras.
Regra da vida: todo apaixonado é um idiota.
Se você não distorce tudo que ela fala, pensando ser algum sinal de que ela te quer; se você não corre toda vez que ela te chama; se você não passa parte do seu dia revisando na memória todos os momentos em que estiveram juntos, desculpa amigo, você não está apaixonado.
Eu me sentia feminino até certo ponto, mesmo que nunca tenha sentido nada por homens. Era no sentimento que me aproximava delas. Gostava de me abrir, de debater. Tinha carência, a falta de algo que não sabia explicar. Ao mesmo tempo nunca perdi o senso de liberdade masculina, o ímpeto para aventuras que eram só minhas. Afinal, quem definiria os gêneros hoje em dia? Alguém ousa?
Quem é o provedor? Quem consola e quem é consolado? Quem inicia a DR? Quem toma a iniciativa do sexo? Entre nós a resposta sempre seria: qualquer um dos dois.
Não me surpreenderia se um dia ela saísse na bateria do Salgueiro. Mentira. Me surpreenderia, mas ela poderia, entende?
Eu queria que todos também se apaixonassem por ela, o que não era difícil. Fazia parte do prazer de ter escolhido a “pessoa certa”. Como ficar imune àquele jeito meigo e atrapalhado? Seu sorriso era capaz de interromper uma guerra por dias.
Ela era a melhor amiga que já tive. Pude abrir meu esgoto e despejar, não sem o mínimo de vergonha, as angústias, medos e desvios de uma personalidade forjada a ferro quente. E ela me aceitou daquele jeito torto.
O telefone tocou 4 vezes até que ela atendesse. A voz rouca de sono me dizia “por que não liga mais tarde?”. Maldita ansiedade. Meu tempo parece correr mais rápido que o ritmo do mundo. Quero tudo agora, pronto, não depois. Droga!
- Liguei em má hora, né?
-Não. Eu já devia ter levantado. Tava de preguiça na cama.
-E o trabalho?
-Me dei a manhã de folga.
-Hum.
-Ele me largou de novo, aquele filho da puta.
Bela forma de iniciar uma conversa. Fiquei em silêncio.
-Você ainda está aí? Desculpa o palavrão.
-Nada.
-Eu não devia estar falando isso pra você.
-Sem problemas. Somos amigos, não somos? Antes de tudo, amigos.
-Que bom saber disso. Vai fazer alguma coisa hoje à noite?
-Não sei. Que tal uma cerva na Praça São Salvador? – eu disse.
-Ótimo. Te ligo mais tarde pra confirmar.
Ela não ligou. Eu quis mandar mensagem, perguntar o que havia acontecido. Eu sabia. Ele voltou com um papo manso. Ela aceitou após algum protesto. Cada um com sua carência. Fiquei com a minha, eles com as que lhes cabiam. Não fui à praça, não fui a canto algum.
Quando outra crise lhe batesse a porta, talvez voltasse a se lembrar do ombro que estava disposto a abrigá-la. Sem rancores.
Um apaixonado é antes de tudo um idiota.



segunda-feira, 31 de agosto de 2015

UM PASSO


Ele estava diante do gatilho. Sentia o cano frio tocar sua têmpora e o homem a gritar:
- Agora diz quem é o policial aqui? Você não queria um policial?
Ficou ali deitado um instante, arquejante, avaliando se ainda estava vivo.
O homem falava com hálito de álcool bem próximo ao seu rosto, que raspava o chão. Colocava alguma espécie de documento diante de seus olhos, mas ele não conseguia enxergar nada. Só pensava “minha mãe não pode ver meu corpo com uma bala na cabeça. Ela não pode me ver assim. ”
Tinha saído apenas para encontrar os amigos em um bar no estacionamento do supermercado. Era sábado à tarde e ficar sozinho em casa, longe da cidade natal, não era nada fácil. Largou família, amigos, namorada... A distância derrubou o que já estava cambaleando. Sonhava com ela quase todos os dias. Acordou chorando algumas vezes, sentiu raiva de si outras.
À primeira vista poderia não parecer, mas ele estava disposto a encarar quem o olhasse. Arrumaria confusão com qualquer pessoa. Este sentimento inconsciente tomava conta dele aos poucos. Não sabia brigar. Então porque o faria? Para apanhar. Seria uma forma de punir-se, de limpar a sujeira em si, de esquecer.
Ver a morte de frente foi diferente.
Tudo começou por causa de uma vaga no estacionamento.
- Qual o problema de parar aqui?
- Essa vaga é de idoso.
- Não tinha visto.
- Então tira o carro.
- Quem é você para me mandar?
- Não te interessa. Tira, seu merda.
- Agora é que eu não tiro. Você é policial? Vai me prender?
O homem sacou a arma e foi na direção de Márcio. Coronhada na nuca, cabeça no asfalto, hálito de álcool invadindo as narinas. Conseguiu se levantar e ainda ameaçado pela arma entrou no carro e acelerou. Os amigos que o esperavam não viram a cena.
Passou por uma blitz policial, mas não teve coragem de denunciar o acontecido. Poderia ser pior. Parou o carro alguns metros adiante e desabou em convulsões de pranto. Ver a morte é assim?
Não foi fácil colocar a cabeça no travesseiro à noite. Não vinha sendo, pelos menos. A mente girava e vasculhava cada passo que seria dado a partir dali, como se um novo ciclo fosse iniciar e mais desafiador do que os anteriores. Poderia ser.
O sentimento era de autodestruição. Recebera um “convite” para deixar o trabalho. A rua seria seu próximo posto. Metade de suas despesas eram pagas com a ajuda dos pais. Estava solteiro não por vontade própria. O aluguel estava atrasado há um mês. Tinha 32 anos e a sensação de que a adolescência ainda fazia parte dele. Alguns vídeos pornôs recebidos em grupos no whatsapp eram seus companheiros nas noites vazias. Sentia que precisava fazer alguma coisa, mas o que? Não encontrava algo que lhe daria força.
Existia fundo do poço?
Ele pensava que poderia não estar mais ali, que aquilo poderia não ser realidade. Não ligou para a mãe. Seria difícil disfarçar o que sentia. Viriam as perguntas que ele não queria responder. Por que não voltava para a casa dos pais?
O preto velho da Casa de Mãe Rita já tinha avisado. Prepara pra dar passo atrás. Se ficar parado é pra se acabar. Sua missão é grande, fio. Mas fio é corajoso. Não vai desistir.
Falou para ele tomar três banhos de cachoeira para mãe Oxum ajudar a clarear as ideias e pedir proteção a pai Xangô.
O que seria dar um passo atrás? Como poderia descer mais?
Ligou para Amanda. A amiga sempre vinha quando ele chamava. Era um pacto sem contrato. Sexo sem compromisso. Conversa franca. Verdade falada na cara sem medo de repreensão. Julgava ser a relação perfeita. Por que não me apaixono por ela? Por que não ficamos juntos de vez?
Vai estragar tudo, você sabe. Deixa como está.
Ela foi embora sem saber que Márcio quase tinha tomado um tiro na fronte. Não sabia também que aquela seria a última vez deles.
Resolveu partir na manhã seguinte de volta para o Rio de Janeiro. Seria voltar atrás? Quem poderia afirmar? As cicatrizes necessárias para que lembrasse das dores, das perdas, dos aprendizados, estavam expostas. Precisava lembrar. Era sua forma de crescer.
Na porta do apartamento, antes mesmo de colocar as chaves na porta, deixou as malas no chão e pôs-se a ouvir os sons que vinham de dentro. A televisão ligada em algum jogo de futebol indicava que o pai estaria ali, provavelmente dormindo. O estalar da gordura ressoava vindo da cozinha. O cheiro ultrapassava a porta e seguia pelo corredor do 5° andar. Era a mãe. A voz alta e rouca da irmã saía da mesma direção. Conversavam, mas ele não conseguiu identificar o assunto.
Abriu a porta.
- Mais um prato na mesa, por favor.
Foram gritos, foi o choro da saudade que se misturava à incredulidade, foi o pai acordando assustado. Aquilo não poderia ser voltar atrás.
Não contaria os eventos dos últimos dias. O silêncio é também uma decisão. Não dizer, diz muito. A ausência de palavras é repleta de significados.
Era recomeço. Era sua primeira prova de coragem. Para onde iria?

A história era o próprio caminho.
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