segunda-feira, 31 de agosto de 2015

UM PASSO


Ele estava diante do gatilho. Sentia o cano frio tocar sua têmpora e o homem a gritar:
- Agora diz quem é o policial aqui? Você não queria um policial?
Ficou ali deitado um instante, arquejante, avaliando se ainda estava vivo.
O homem falava com hálito de álcool bem próximo ao seu rosto, que raspava o chão. Colocava alguma espécie de documento diante de seus olhos, mas ele não conseguia enxergar nada. Só pensava “minha mãe não pode ver meu corpo com uma bala na cabeça. Ela não pode me ver assim. ”
Tinha saído apenas para encontrar os amigos em um bar no estacionamento do supermercado. Era sábado à tarde e ficar sozinho em casa, longe da cidade natal, não era nada fácil. Largou família, amigos, namorada... A distância derrubou o que já estava cambaleando. Sonhava com ela quase todos os dias. Acordou chorando algumas vezes, sentiu raiva de si outras.
À primeira vista poderia não parecer, mas ele estava disposto a encarar quem o olhasse. Arrumaria confusão com qualquer pessoa. Este sentimento inconsciente tomava conta dele aos poucos. Não sabia brigar. Então porque o faria? Para apanhar. Seria uma forma de punir-se, de limpar a sujeira em si, de esquecer.
Ver a morte de frente foi diferente.
Tudo começou por causa de uma vaga no estacionamento.
- Qual o problema de parar aqui?
- Essa vaga é de idoso.
- Não tinha visto.
- Então tira o carro.
- Quem é você para me mandar?
- Não te interessa. Tira, seu merda.
- Agora é que eu não tiro. Você é policial? Vai me prender?
O homem sacou a arma e foi na direção de Márcio. Coronhada na nuca, cabeça no asfalto, hálito de álcool invadindo as narinas. Conseguiu se levantar e ainda ameaçado pela arma entrou no carro e acelerou. Os amigos que o esperavam não viram a cena.
Passou por uma blitz policial, mas não teve coragem de denunciar o acontecido. Poderia ser pior. Parou o carro alguns metros adiante e desabou em convulsões de pranto. Ver a morte é assim?
Não foi fácil colocar a cabeça no travesseiro à noite. Não vinha sendo, pelos menos. A mente girava e vasculhava cada passo que seria dado a partir dali, como se um novo ciclo fosse iniciar e mais desafiador do que os anteriores. Poderia ser.
O sentimento era de autodestruição. Recebera um “convite” para deixar o trabalho. A rua seria seu próximo posto. Metade de suas despesas eram pagas com a ajuda dos pais. Estava solteiro não por vontade própria. O aluguel estava atrasado há um mês. Tinha 32 anos e a sensação de que a adolescência ainda fazia parte dele. Alguns vídeos pornôs recebidos em grupos no whatsapp eram seus companheiros nas noites vazias. Sentia que precisava fazer alguma coisa, mas o que? Não encontrava algo que lhe daria força.
Existia fundo do poço?
Ele pensava que poderia não estar mais ali, que aquilo poderia não ser realidade. Não ligou para a mãe. Seria difícil disfarçar o que sentia. Viriam as perguntas que ele não queria responder. Por que não voltava para a casa dos pais?
O preto velho da Casa de Mãe Rita já tinha avisado. Prepara pra dar passo atrás. Se ficar parado é pra se acabar. Sua missão é grande, fio. Mas fio é corajoso. Não vai desistir.
Falou para ele tomar três banhos de cachoeira para mãe Oxum ajudar a clarear as ideias e pedir proteção a pai Xangô.
O que seria dar um passo atrás? Como poderia descer mais?
Ligou para Amanda. A amiga sempre vinha quando ele chamava. Era um pacto sem contrato. Sexo sem compromisso. Conversa franca. Verdade falada na cara sem medo de repreensão. Julgava ser a relação perfeita. Por que não me apaixono por ela? Por que não ficamos juntos de vez?
Vai estragar tudo, você sabe. Deixa como está.
Ela foi embora sem saber que Márcio quase tinha tomado um tiro na fronte. Não sabia também que aquela seria a última vez deles.
Resolveu partir na manhã seguinte de volta para o Rio de Janeiro. Seria voltar atrás? Quem poderia afirmar? As cicatrizes necessárias para que lembrasse das dores, das perdas, dos aprendizados, estavam expostas. Precisava lembrar. Era sua forma de crescer.
Na porta do apartamento, antes mesmo de colocar as chaves na porta, deixou as malas no chão e pôs-se a ouvir os sons que vinham de dentro. A televisão ligada em algum jogo de futebol indicava que o pai estaria ali, provavelmente dormindo. O estalar da gordura ressoava vindo da cozinha. O cheiro ultrapassava a porta e seguia pelo corredor do 5° andar. Era a mãe. A voz alta e rouca da irmã saía da mesma direção. Conversavam, mas ele não conseguiu identificar o assunto.
Abriu a porta.
- Mais um prato na mesa, por favor.
Foram gritos, foi o choro da saudade que se misturava à incredulidade, foi o pai acordando assustado. Aquilo não poderia ser voltar atrás.
Não contaria os eventos dos últimos dias. O silêncio é também uma decisão. Não dizer, diz muito. A ausência de palavras é repleta de significados.
Era recomeço. Era sua primeira prova de coragem. Para onde iria?

A história era o próprio caminho.
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