sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O QUE PASSOU





Abriu a mala em frente à cama e desistiu de colocar as roupas no armário. Ao menos por alguns instantes. Queria esvaziar a mente, se isso fosse possível. Deitou na cama com as pernas para fora do colchão e tirou os sapatos sem usar as mãos. Olhava para o teto, mas não era ali que estavam seus pensamentos. Respirou profundamente por duas vezes. Era como limpar os pulmões. O relógio marcava 17h. Bem ali, ao alcance da janela do hotel, estava a bela vista de uma praia carioca. Ali dentro, o clima gelado do ar condicionado. Do lado de fora, o calor do início de verão em final de tarde.

Era difícil para ele explicar como tinha chegado até ali. Trinta anos, uma profissão do qual não se orgulhava tanto, algumas crises emocionais ocasionais, um namoro que caminhava trôpego, contato precário com o pai e a preocupação com a saúde frágil da mãe, nenhum filho, a mesma cidade de sempre, alguns poucos e bons amigos e uma vontade inexplicável de se jogar do oitavo andar.
Pôs uma bermuda e desceu. No elevador evitou as conversas sobre o clima e temperatura com outro hóspede. O assunto tinha a capacidade de irritá-lo com facilidade. Odiava conversas sem desejo. Queria ouvir e ser ouvido de verdade. Palavras e pensamentos eram sagrados para ele.

Ficou sentado na areia por um tempo com o olhar perdido. Não era nostalgia, nem angústia, nem tristeza. Era o inexplicável. Por vezes tinha vontade de largar tudo e ir para o mato. Em outras, pensava em fazer outra faculdade, abrir um negócio ou escrever um livro. A inquietação crônica da geração Y.

- Boa tarde.

Ele despertou do sono de olhos abertos.

- Oi. Com licença. Vou dar um mergulho. Você pode olhar minha bolsa, por favor? – E saiu sem ouvir a resposta.

Ele apenas observou a ida dela. Assentiu com a cabeça e só. Gostou do sotaque. “Merrrgulho”, “dixculpa”.

- Obrigada, viu?
- Nada. Fica à vontade.
- Não é daqui, né?
- Curitiba.
- Ah tá. Tenho uma amiga lá.

Sentiu vergonha do corpo magro e desbotado. Sol apenas nas férias.
Ela colocou a canga ao lado dele e desandou a falar. Ele fez o exercício da escuta. Tinha pouco a dizer. Ela era mais solta.

- Vai fazer alguma coisa hoje?
- Nada programado.
- Tá hospedado aqui perto?
- Hotel Carioca. Conhece?
- Sei onde é. Tem um barzinho perto. Te encontro 21h, pode ser?

Ele nem saberia negar. Nunca tinha visto uma mulher tão decidida. Pensou na namorada. Não era intenção trair. Estavam flertando? Queria saber o que ela pensaria, mas sabia que não teria coragem de contar. Preferiu a omissão, não sabia se por culpa, defesa ou desejo.

Ana Maria era o nome dela. Ele só saberia quando já estavam sentados naquela mesa de bar tipicamente carioca. Ela tinha terminado o namoro de 3 anos havia apenas uma semana. Para ela, na verdade, a relação já tinha terminado 4 meses antes, quando o ex-namorado a chamou pelo nome de outra mulher quando faziam sexo. Ele tentou se desculpar, dizer que estava com problemas no trabalho, mas a partir dali ela sentiu que não fazia mais sentido. Não quis se aprofundar no que vinha acontecendo na vida dele, pois sabia que encontraria o que não queria. Preferiu deixar a relação terminar por si. Doeria, mas deixaria a sensação de que foi vivida até a última gota, até quando não tivesse mais a menor vontade de voltar, ligar, saber da vida ou enviar um cartão de “boas festas”. Contou parte dessa história para seu novo amigo, mas preferiu guardar para si as partes mais íntimas, aquelas que apenas ela entendia.

O que a levou a iniciar uma conversa com Renato na praia? Não sabia. Deu vontade. Foi lá e fez. Durante três anos quase não conversou com pessoas do sexo oposto, pois isso aguçava o ciúme do namorado. Foi se isolando. Sentia que aquilo era como uma retomada. 

Para ele seriam 4 dias longe de casa. Pouco mais de 800 km de distância da rotina.

- Vim participar do processo seletivo de uma empresa.
- E dura 4 dias?
- Na verdade, dois, mas resolvi me dar mais uns dias de folga.
-Mas tem a possibilidade de ser desqualificado antes, não?
-Obrigado pelo apoio.
- Mas não tem?
- Eu ficaria de qualquer forma. Tô precisando de férias.
- De quê? Você não tá desempregado?
- Da vida.
- Tem como? Me ensina?

Se despediram quando o garçom já jogava um balde com água e sabão no chão do bar. Eram duas e meia da manhã, estavam bêbados, porém firmes. Ele tinha que estar no prédio da construtora às 10h. Bateu na cama e acordou com a boca seca e os raios de sol invadindo o quarto pela fresta da cortina. Ainda faltavam duas horas até a entrevista que teria na empresa. Passou o dia entre dinâmicas de grupo e testes técnicos. Falou com a namorada no intervalo para o almoço. Pediu desculpas por não ter enviado mensagem antes de dormir. Não contou sobre a noite de cervejas e conversas com Ana Maria.

À noite, ela o levou para uma roda de samba que iria com os amigos. Apresentou Renato a eles. Ele estava um pouco sem graça no começo, mas sorriu sempre que necessário. Desajeitado, mas inexplicavelmente confiante, conversou com gente que nunca tinha visto, diferente da frieza dos seus conterrâneos.

Dançaram um samba ou dois juntos. Riram. Era como se aquilo acontecesse todas as semanas. Era uma fuga de si, sem precisar fugir.

Queriam se ver mais. Já era natural marcar a próxima saída.

-Por que não na minha casa amanhã? É sua despedida.
- Tinha que me lembrar isso?
- A gente bebe pra esquecer.

Subiu dois andares daquele prédio antigo em Botafogo. A porta já estava aberta.

- Pode entrar. Tô na cozinha.
Ele sentiu um cheiro bom vindo de lá. Seguiu.
- Eu não costumo receber muita gente aqui em casa. Principalmente alguém que não conheço. Mas sinta-se à vontade.
- A gente se conhece.
- Você é que pensa.
- Pensava mesmo, mas pelo visto...

Sentiu-se intimidado. Tinham sido horas e horas de conversa nos dias anteriores. “Como assim não se conheciam?” Era difícil para um homem entender que para elas, conhecer era muito mais profundo do que trocar algumas palavras e histórias em meio a cervejas e risadas.

Enviou mensagem para a namorada dizendo que já estava indo dormir. Já passava de meia-noite e nada além de conversas e um bom vinho. Mas ele preferia não contar.  

Quem ele era destoava de quem ele queria ser. Tentava expor a imagem do que projetava, mas em alguns momentos soava falso, frouxo. Tinha sido treinado para esconder suas fraquezas. Tornar-se adulto não tinha sido uma opção. O abandono do pai quando ele tinha apenas 12 anos fez com que sua visão da vida fosse diferente dos amigos. Ele já pensava em como sustentar uma casa, ajudar a mãe em tudo, a não dar mais trabalho a ela além do que já era inevitável. Talvez por isso tenha sentido que parte da sua adolescência tenha sido jogada fora. Por mais que a mãe tentasse tirar de suas costas as responsabilidades que atribuía a si, ele não conseguia se desvencilhar. Eram apenas ele e ela, pensava.

- Muito doido isso.
- Isso o que? – perguntou Ana Maria.
- Nós dois aqui.
- Dois insones que se encontraram para dividir um pouco a solidão. O que tem de anormal nisso?
- Pensando assim, nada.
- É bom saber que não precisa de sexo para ter uma boa relação com um homem.

Ele sabia que era verdade. Não precisou falar.

O celular começou a tocar. Era a namorada. Hesitou por um tempo. Atendeu pela insistência.
Ana Maria observou a transformação do rosto dele. Ele permanecia em silêncio. A boca levemente aberta. Os olhos perdidos e perto de soltar a primeira lágrima. Disse apenas “Tá. Vou dar um jeito. To indo já.”

- Minha...
- Mãe?
- É. Tá mal no CTI. Não se sabe se sobrevive mais um dia. – E chorou.

Parecia sonhar, mas apenas fechou os olhos por alguns segundos. Se viu ajoelhado e com os cotovelos apoiados no colchão. Renato, aos 11 anos, rezava da forma que tinha aprendido e acreditava, pois sabia que algo não ia bem. Sua casa não era a mesma. Mesmo que disfarçassem, os pais não conseguiam esconder o fim. Havia uma energia diferente no ar, que ele não sabia explicar. Só queria que sua vida voltasse a ser como antes. Mas como era? Era diferente. Mas como?

Era um escravo das lembranças.

Deram um abraço tão íntimo quanto nunca tinham sentido. Era um encontro necessário, sentiam. Era uma despedida necessária, sabiam. Distantes seriam amigos, talvez.

A mãe morreu três dias depois. O namoro dele acabou três meses depois.

Ele não conseguiu o emprego. Descobriu que seria mais feliz (e foi) abrindo um sebo de livros e vinis.

Ana Maria e Renato trocaram poucas palavras por whatsapp depois disso. Nada mais.

O que foram, sem qualquer definição humana, ficou cristalizado no tempo.




Ernesto Xavier


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