Fim de
ano e os funcionários resolviam se encontrar para a tradicional
confraternização. Não era nada muito elaborado. Normalmente Arnaldo, o cara do
almoxarifado e sambista de plantão, indicava um bar na cidade onde ele e seu
grupo de samba-de-raiz iriam tocar e lá se fazia a reunião. Passavam o ano
trocando apenas formalidades de trabalho. Afinidades existiam aqui e ali, mas
nada que justificasse um convite para ser padrinho do filho que vai nascer,
férias conjuntas em uma praia no nordeste ou para ser fiador no aluguel do
apartamento novo. Eram todos colegas de trabalho e ponto. Em meio a intimidade
forçada que se estabelecia nesses encontros eles até que se divertiam. Enquanto
Arnaldo se esforçava no tantam, Maurício era o animador. Aquele cara que conta
piadas, imita o chefe, que é claro, não está presente e puxa a primeira pessoa
para dançar, criando uma pista de dança no meio do bar. Vanessa, a servente que
faz o melhor café do Rio de Janeiro na opinião de Vera do arquivo, fumante
desde os 15 anos e frequentadora assídua do café do corredor, é a
responsável por organizar o amigo-oculto: faz os papéis com os nomes e a lista
de presentes desejados. Régis e Carlos Alberto da informática não eram muito
animados, mas sempre compareciam. Os nerds do trabalho eram bebuns convictos.
Sabiam toda a história da cerveja, com que comida combinavam cada tipo e se
orgulhavam de contar cada detalhe. Sobre os outros não se tinha muito o que
falar. Estagiários(e principalmente estagiárias) cheios de juventude, que destoavam
do resto, se divertiam em seu mundinho particular, mas que no fim das contas
animavam o clima. Tinham os tímidos, as recatas que depois de duas doses de
caipirinha já se soltavam e cantavam cada refrão do Arlindo Cruz
´Madureiraaaaaaaa, lalaiá...´.
Tudo
corria normal como sempre. Assim como nos anos anteriores, Camila do jurídico
não estava. Fora casada por 7 anos com um executivo bem sucedido e ciumento.
Não era de falar muito. Reservada por opção e convicção. Não sabíamos, mas a
recém-separada descobrira o romance de 2 anos do ex-marido com o cunhado. Sim,
cunhadO. Não sabia explicar se perder o marido para outro homem era melhor do
que para uma piriguete mais nova, o que seria mais fácil de esperar.
Ao entrar
no salão naquela noite fez-se um pequeno silêncio, que talvez não tenha sido
percebido por todos, mas que invadiu o espaço, que mesmo entre bêbados,
conversas animadas e batuques, fez presente como em filmes do velho oeste
americano quando o bandido adentrava a porta do bar. O que ela estava fazendo
ali?
Vera, a
do arquivo, tratou logo de ir até ela oferecer um lugar a seu lado na mesa,
como se aquela presença fosse a mais comum do recinto.
Era a
mesma Camila de todos os dias, ao passo que era outra. De cabelos soltos, uma
roupa que marcava as curvas até então desconhecidas de seu corpo, de lentes de
contato, ao contrário do habitual óculos, maquiagem e um sorriso que podia
animar qualquer velório.
Acompanhei
sua trajetória em câmera lenta até a mesa. Eu estava no balcão do bar pegando
um chopp e meio que sem pensar pedi mais um para o barman. Voltei para a mesa
com os dois chopps na mão.
O que eu
estava fazendo? Nunca tinha trocado mais do que frases feitas com ela. Era o
macho alfa que despertava tardiamente dentro de mim?
-Que bom
você aqui, aceita?
-Obrigado!
Verdade, né? Nunca apareci...resolvi mudar isso.
-Nunca é
tarde. Seja bem-vinda! Um brinde?
-Claro! À quê?
Pensei em
fazer a brincadeira infame da maldição dos 7 anos de abstinência para os que
não brindam, mas achei exagerado para o momento.
-Aos
novos laços! Que eles sejam ainda mais fortes no próximo ano!
-A vida
nova! - disse ela em tom de libertação de mulher reprimida.
O papo se
estendeu pela noite adentro. Muitos chopps se passaram, Vera, a do arquivo, se
sentiu isolada por este casal que agora conversava com entusiasmo e foi ter com
Vanessa, sua companheira do café. Era estranho como alguém tão interessante
estava próxima a mim todos os dias, porém escondida em seu véu de
invisibilidade.
Duas da
manhã, os garçons já guardavam as cadeiras, indicando que deveríamos sair.
-Vamos
tomar uma saideira aqui perto? - disse ela.
-Será que
tem algum lugar aberto ainda?
-Na rua
aqui do lado tem um bar que só fecha quando o último cliente pede a conta.
-Como
você sabe disso?
-Nem me pergunte.
Estávamos
bêbados em um estágio avançado, daquele em que falamos tocando um no outro,
sempre com os rostos próximos e os olhos de ressaca que dariam inveja a Capitu.
Tomamos a saideira.
-Vim de
táxi e você?
-Também.
Mora aonde?
-Tijuca.
-Andaraí.
Quer rachar um táxi? É caminho...
Dentro do
carro, em um movimento natural, começamos a nos beijar. O taxista provavelmente
desfrutava de uma vista privilegiada, onde parecíamos dois adolescentes
afoitos.
-Tijuca.
- disse o motorista.
- Deu
quanto?
- 25
reais.
-Deixa
que eu pago.
Saquei a
carteira, paguei a corrida e saltei do carro junto com ela. O Andaraí ficaria
para outra hora.
- Quer
subir?
- Quero.
- Eu to
um pouco enferrujada pra essas coisas. Nem lembro quando foi que outro homem
entrou na minha casa.
Respeitamos
o elevador que tinha câmeras e entramos no apartamento já tirando a roupa. A
madrugada se transformou em manhã e jazimos exaustos sobre a cama em gozo.
Meio-dia
e acordei com a luz que invadia a janela do quarto. Ela não estava. A boca seca
e a cabeça latejando me lembravam de cada chopp da noite anterior. Isso não me
importava muito dentro daquelas circunstâncias. E ela? Estaria na cozinha
preparando um café-da-manhã na cama? Levantei, saí do quarto e a procurei na
cozinha. Incrível como os apartamentos antigos da Tijuca são enormes. Nem sinal
dela em qualquer canto da casa. Na cozinha um papel branco sobre a mesa de
madeira:
"Não sei bem como chegamos até aqui... Bebi demais, saí de mim. Para evitar algum constrangimento, fui à rua fazer compras e para te dar tempo de sair sem despedidas.
Peço
desculpas se fiz algo de errado. Seja lá o que for, foi um engano.
Ass.
Camila"
Na
segunda-feira lá estava ela de coque, óculos, saia comportada e blusa fechada.
No café
veio até mim e percebendo que estávamos a sós, perguntou:
-
Aconteceu alguma coisa?
- Não,
você só deu abrigo a um pobre bêbado.
Terminamos
o café em silêncio. Cada um foi para a sua baia e nunca mais se tocou no
assunto.