terça-feira, 22 de dezembro de 2015

CONFRATERNIZAÇÃO






Fim de ano e os funcionários resolviam se encontrar para a tradicional confraternização. Não era nada muito elaborado. Normalmente Arnaldo, o cara do almoxarifado e sambista de plantão, indicava um bar na cidade onde ele e seu grupo de samba-de-raiz iriam tocar e lá se fazia a reunião. Passavam o ano trocando apenas formalidades de trabalho. Afinidades existiam aqui e ali, mas nada que justificasse um convite para ser padrinho do filho que vai nascer, férias conjuntas em uma praia no nordeste ou para ser fiador no aluguel do apartamento novo. Eram todos colegas de trabalho e ponto. Em meio a intimidade forçada que se estabelecia nesses encontros eles até que se divertiam. Enquanto Arnaldo se esforçava no tantam, Maurício era o animador. Aquele cara que conta piadas, imita o chefe, que é claro, não está presente e puxa a primeira pessoa para dançar, criando uma pista de dança no meio do bar. Vanessa, a servente que faz o melhor café do Rio de Janeiro na opinião de Vera do arquivo, fumante desde os 15 anos e frequentadora assídua do café do corredor,  é a responsável por organizar o amigo-oculto: faz os papéis com os nomes e a lista de presentes desejados. Régis e Carlos Alberto da informática não eram muito animados, mas sempre compareciam. Os nerds do trabalho eram bebuns convictos. Sabiam toda a história da cerveja, com que comida combinavam cada tipo e se orgulhavam de contar cada detalhe. Sobre os outros não se tinha muito o que falar. Estagiários(e principalmente estagiárias) cheios de juventude, que destoavam do resto, se divertiam em seu mundinho particular, mas que no fim das contas animavam o clima. Tinham os tímidos, as recatas que depois de duas doses de caipirinha já se soltavam e cantavam cada refrão do Arlindo Cruz ´Madureiraaaaaaaa, lalaiá...´.

Tudo corria normal como sempre. Assim como nos anos anteriores, Camila do jurídico não estava. Fora casada por 7 anos com um executivo bem sucedido e ciumento. Não era de falar muito. Reservada por opção e convicção. Não sabíamos, mas a recém-separada descobrira o romance de 2 anos do ex-marido com o cunhado. Sim, cunhadO. Não sabia explicar se perder o marido para outro homem era melhor do que para uma piriguete mais nova, o que seria mais fácil de esperar.

Ao entrar no salão naquela noite fez-se um pequeno silêncio, que talvez não tenha sido percebido por todos, mas que invadiu o espaço, que mesmo entre bêbados, conversas animadas e batuques, fez presente como em filmes do velho oeste americano quando o bandido adentrava a porta do bar. O que ela estava fazendo ali?

Vera, a do arquivo, tratou logo de ir até ela oferecer um lugar a seu lado na mesa, como se aquela presença fosse a mais comum do recinto.

Era a mesma Camila de todos os dias, ao passo que era outra. De cabelos soltos, uma roupa que marcava as curvas até então desconhecidas de seu corpo, de lentes de contato, ao contrário do habitual óculos, maquiagem e um sorriso que podia animar qualquer velório.

Acompanhei sua trajetória em câmera lenta até a mesa. Eu estava no balcão do bar pegando um chopp e meio que sem pensar pedi mais um para o barman. Voltei para a mesa com os dois chopps na mão.

O que eu estava fazendo? Nunca tinha trocado mais do que frases feitas com ela. Era o macho alfa que despertava tardiamente dentro de mim?
-Que bom você aqui, aceita?
-Obrigado! Verdade, né? Nunca apareci...resolvi mudar isso.
-Nunca é tarde. Seja bem-vinda! Um brinde?
-Claro! À quê?

Pensei em fazer a brincadeira infame da maldição dos 7 anos de abstinência para os que não brindam, mas achei exagerado para o momento.

-Aos novos laços! Que eles sejam ainda mais fortes no próximo ano!
-A vida nova! - disse ela em tom de libertação de mulher reprimida.
O papo se estendeu pela noite adentro. Muitos chopps se passaram, Vera, a do arquivo, se sentiu isolada por este casal que agora conversava com entusiasmo e foi ter com Vanessa, sua companheira do café. Era estranho como alguém tão interessante estava próxima a mim todos os dias, porém escondida em seu véu de invisibilidade.
Duas da manhã, os garçons já guardavam as cadeiras, indicando que deveríamos sair.
-Vamos tomar uma saideira aqui perto? - disse ela.
-Será que tem algum lugar aberto ainda?
-Na rua aqui do lado tem um bar que só fecha quando o último cliente pede a conta.
-Como você sabe disso?
-Nem me pergunte.

Estávamos bêbados em um estágio avançado, daquele em que falamos tocando um no outro, sempre com os rostos próximos e os olhos de ressaca que dariam inveja a Capitu. Tomamos a saideira.

-Vim de táxi e você?
-Também. Mora aonde?
-Tijuca.
-Andaraí. Quer rachar um táxi? É caminho...
Dentro do carro, em um movimento natural, começamos a nos beijar. O taxista provavelmente desfrutava de uma vista privilegiada, onde parecíamos dois adolescentes afoitos.
-Tijuca. - disse o motorista.
- Deu quanto?
- 25 reais.
-Deixa que eu pago.
Saquei a carteira, paguei a corrida e saltei do carro junto com ela. O Andaraí ficaria para outra hora.
- Quer subir?
- Quero.
- Eu to um pouco enferrujada pra essas coisas. Nem lembro quando foi que outro homem entrou na minha casa.

Respeitamos o elevador que tinha câmeras e entramos no apartamento já tirando a roupa. A madrugada se transformou em manhã e jazimos exaustos sobre a cama em gozo.
Meio-dia e acordei com a luz que invadia a janela do quarto. Ela não estava. A boca seca e a cabeça latejando me lembravam de cada chopp da noite anterior. Isso não me importava muito dentro daquelas circunstâncias. E ela? Estaria na cozinha preparando um café-da-manhã na cama? Levantei, saí do quarto e a procurei na cozinha. Incrível como os apartamentos antigos da Tijuca são enormes. Nem sinal dela em qualquer canto da casa. Na cozinha um papel branco sobre a mesa de madeira:


"Não sei bem como chegamos até aqui... Bebi demais, saí de mim. Para evitar algum constrangimento, fui à rua fazer compras e para te dar tempo de sair sem despedidas.
Peço desculpas se fiz algo de errado. Seja lá o que for, foi um engano.
Ass. Camila"

Na segunda-feira lá estava ela de coque, óculos, saia comportada e blusa fechada.
No café veio até mim e percebendo que estávamos a sós, perguntou:
- Aconteceu alguma coisa?
- Não, você só deu abrigo a um pobre bêbado.
Terminamos o café em silêncio. Cada um foi para a sua baia e nunca mais se tocou no assunto.


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