segunda-feira, 26 de outubro de 2015

MULHER ANTENADA






Maria tentava escrever uma carta. Em vão. Sentia uma dificuldade extrema de expor sentimentos e opiniões com uma caneta sobre o papel. Não fazia isso desde a infância, pensava. Sua última lembrança de receber algo escrito por alguém remetia a um cartão de natal que ganhou da avó aos 9 anos de idade. O ato de enviar cartas ela não possuía em sua gaveta de memórias remotas. 

Ela é a típica mulher antenada: tem tablet, smartphone, ultrabook e Ipod. Evita comer glúten e lactose. Malha 4 vezes por semana e passa Renew. Posta no Instagram, compartilha no Facebook e está desistindo do Twitter. Fez MBA em Marketing e Pós-graduação em Administração Pública. Lê horóscopo no jornal pela manhã, mas ao fim do dia já não se lembra do que leu e nem se a previsão deu certo. É apenas um hábito. O nome Maria é considerado por ela interessante, por remeter a imagem de uma mulher mais simples, o que contrasta com seu estilo sofisticado. Ela está sozinha em um quarto de hotel em São Paulo. A noite fria que ela abraçou ao caminhar pela Avenida Paulista ficou do lado de fora. No quadrado simples e confortável onde ela se encontra o clima é ameno, acompanhando os gestos delicados dela. 

Escreve, apaga, torna a escrever, desiste por um tempo, retorna, não se agrada com a primeira frase e se desespera por ter tanto a dizer e ver a página vazia. Não encontra palavras e nem o impulso que a levou a tomar aquela atitude. 

Está em São Paulo para uma reunião com investidores estrangeiros que querem comprar uma parte da empresa em que ela trabalha. Chegara um dia antes para preparar alguns detalhes com mais calma e não correr o risco de um vôo atrasado na manhã da reunião. É uma mulher prevenida. 

Duas horas antes, quando sentada na cafeteria da Livraria Cultura, pensava no caos que tomava conta de sua alma até então em equilíbrio. Tinha nas mãos um envelope que prometera abrir apenas quando encontrasse Gabriel, seu namorado há 3 anos. Um oposto que a completava onde ela mais precisava. Um semelhante que a confrontava por saber que a mulher que amava não era perfeita, pois ninguém é. Ela não resistiu e abriu o envelope para saber seu conteúdo. Sentia-se no direito de ter a solidão e a reação que julgasse oportuna, sem o olhar de conhecidos. 

O que diria Virginia Woolf sobre Maria? O que descreveria Simone de Beauvoir? E Lygia Fagundes Telles? Clarice Lispector? Martha Medeiros teria algo de bom a lhe dizer? Suas mentoras não alcançavam a complexidade das suas necessidades e medos. O que era já não sabia mais. Não havia paradigmas a seguir. Agora vivia o presente e o futuro, a certeza e a esperança, seu sossego e a perdição. Estava grávida. 

Seus planos de maternidade remetiam a um tempo de inocência em plena efervescência hormonal da adolescência. Agora aos 29 anos só conseguia pensar na promoção que batalhava para alcançar na empresa, nos lugares do mundo onde ainda gostaria de pisar, na estabilidade financeira e emocional que sentia ainda distante de acordo com os padrões rígidos que estabelecera para si. Ela que era fruto da revolução feminina das décadas de 60 e 70 o qual suas avós e mãe enfrentaram. 

Tentava se olhar por fora. Não a casca que cobria suas vísceras, mas ter um olhar distanciado daquilo que vivia a cada segundo. Achava engraçado perceber a loucura que carregava no olhar distante, o pensamento mergulhado em descobertas, tudo misturado. Era apenas ela e nada mais.

O celular começou a vibrar sobre a mesa onde Maria tentava escrever. Ela queria enviar a carta para Gabriel, carta esta que chegaria depois dela ao Rio de Janeiro. Foi a forma que encontrou para dar a inesperada notícia: ele seria pai. Não tinha coragem de falar para ele diretamente. Pelo menos até aquele momento não encontrava essa força. O celular continuava a vibrar. Gabriel. 

- Alô, amor?
- Oi.
- Tá tudo bem?
- Tudo. Não foi pro futebol hoje?
- Não. Fiquei em casa. Me bateu uma vontade de te falar uma coisa.
- O que? Fala.
- Eu até anotei pra não esquecer: “Nada pode passar sem lágrimas, suor e amor. Se não for pra sentir, prefiro esperar. Meu tempo é feito de intensidades. Só é perfeito para nós o que contiver as qualidades e defeitos certos para aquilo que precisamos aprender. Nossas necessidades são cheias de mistérios.”

- De quem é?
- Meu. 

Em poucas palavras ele conseguiu dizer o que ela precisava escutar. Como se ele já soubesse de tudo o que estava acontecendo dentro dela. Maria conseguiu captar os sentimentos de cada frase. Sem que ele percebesse, ela começou a chorar. Tinha uma vida que precisaria muito dela. E a partir dali saberia que ela também precisaria tanto daquela vida que gerava. Vida alimentando vida. 

- Lindo.
- Ninguém nunca nesse mundo vai entender o que temos. Até porque o que temos não é deste mundo. Não é mesmo? Te amo.

Ficaram ainda um tempo conversando e depois se despediram. As declarações enigmáticas de Gabriel tinham atingido ela em cheio. A mulher antenada agora seria mãe. Foi então invadida por uma felicidade que a deixava inquieta, sem palavras que pudessem descrever com justiça os sentimentos que se faziam presentes. Queria poder inventá-las de acordo com suas crenças e desejos, pois as que aprendera não lhe confortavam. O que sentia não tinha um símbolo, mas era carregado de significados. Era tão bom ser inexplicável!


Ernesto Xavier


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

DESPEDIDAS




Às vezes nos despedimos para sempre de alguém que continuaremos vendo. O adeus ocorre sem palavras em um abraço que talvez nunca será lembrado, em uma tarde de outono na estação do metrô. Este não será o adeus contado pelo casal. Na história ficará marcada a noite de 2 meses depois em que ela o avisou por SMS que tinha deixado as coisas dele na portaria do prédio. Entre tulipas de chopp será contado e recontado. Assim será até quando uma estudante de cinema da PUC, com jeito de menina parisiense o levar a sonhar novamente. O processo se reiniciará até que o porteiro de um outro prédio venha a ser o portador das lembranças de uma outra acabada e confusa história de amor.
O homem se separa e continua encolhido em um canto da cama. Sem que ele saiba, seus braços a procuram na madrugada vazia. Em vão.

Havia amor no riso, assim como havia pesar no beijo. Aquele que seria o último, que faria da despedida um hiato na existência, pois amores deixam vazios que depois são preenchidos com lembranças a serem contadas.

O cheiro dela permanecerá e quando caminhando distraidamente pela Ataulfo de Paiva ele cruzar com uma mulher de igual perfume, terá por ela uma atração repentina que se dissipará rapidamente junto com o aroma que se perde sem deixar rastro.

Na caixa deixada na portaria poucos objetos: uma toalha, um barbeador elétrico, duas cuecas, uma bermuda, um jeans, três camisas, um par de havaianas, um Ray Ban e um porta-retrato com a foto da primeira viagem que fizeram juntos, para Búzios. O que restou da relação cabia em uma caixa que um dia trouxe um aparelho de DVD novo. Ele que foi comprado pelos dois para preencher as noites de chuva no apartamento, com pizza e refrigerante. O aparelho está esquecido. Perdeu o emprego para o Blu Ray.

Não costumamos perceber as despedidas. Quando se diz “adeus” é porque o fim já aconteceu há muito tempo. O momento derradeiro de verdade se faz no último beijo com resquícios de paixão. Por que não paramos por aí? Seguimos...

A mulher certo dia o viu sair do apartamento e teve certeza de que seu namorado nunca mais voltaria. O homem que adentrara dez minutos depois já não era mais o mesmo, era outro com quem ela ainda transaria mais algumas vezes, em um sexo sem sentido na tentativa de resgatá-lo, de fazer o namorado novamente entrar pela porta do apartamento. Já não seria mais possível. Ele tinha ido sem olhar para trás e dizer tchau.


Haverá pesar na despedida. A dor sentida não será mera formalidade de luto e sim a amputação de um pedaço de si. Algo que por um tempo julgou ser imprescindível. E era. Estar ao lado não quer dizer estar junto. Assim como eles, são tantos casais, que de mãos dadas estão mais separados do que qualquer distância poderia fazê-los.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

CRISE



O alarme do celular tocou alto e o som invadiu todo o quarto com aquela música da Marisa Monte: “Ainda bem que agora eu encontrei você...”. A melodia que fora uma de suas prediletas virou pesadelo. Ela agora faz todos os dias uma associação com o momento em que deve começar a se preocupar com o trabalho, o trânsito, a dieta... Nenhuma música resiste quando vira ringtone. Desligou o despertador o mais rápido que pôde depois de tatear por alguns segundos intermináveis a mesa de cabeceira, derrubar o celular no chão e achá-lo ao lado das Havaianas embaixo da cama. Processo que era quase um ritual. Após um minuto de preguiça, deitada, sua consciência foi ficando ativa novamente.

- Hoje é sábado!

Havia se esquecido de desligar o despertador na noite anterior. Uma alegria subiu pelo seu corpo, como na infância quando levantava para ir à escola e a mãe a avisava de que era feriado e ela poderia dormir mais um pouco. Pequenos prazeres nunca perdem a validade.

O celular toca novamente. Mais Marisa Monte. Ela vê a foto e o nome do namorado na tela. A música chega quase ao fim e ela não atende. Caixa postal. Torna a tocar.

- Alô, Ana? Te acordei?
-Não. Já tava acordada há um tempo.
-Te conheço. Com essa voz...
-Fala logo o que você quer, Felipe.
-Desculpa. To ligando pra falar que o vôo vai atrasar meia-hora. Devo chegar 10h30 mais ou menos.
-Putz! Esqueci que você chegava hoje.
-Eu posso pegar um táxi.
-Não precisa. Eu te pego lá.
- Até daqui a pouco. Obrigado. Te amo.

Aquele “te amo” no fim da frase foi como uma facada no peito. Ela chegou a pensar em responder “também te amo”, mas para ela aquilo seria ainda pior. Ela não mentiria para ele, mas para ela. Não tinha certeza sobre o que sentia àquele momento. Ainda amava? Preferiu desligar sem dizer nada.
Tudo começou com uma mensagem suspeita que ela viu no celular dele. Culpou-se por invadir a privacidade do namorado, lendo suas mensagens de texto, vendo quem tinha ligado. Porém uma desconfiança que surgiu sem motivos aparentes a fez ir atrás. E como dizia a mãe: “Quem procura, acha”.

O sms deixava aberta a possibilidade de interpretações. “Está preparado para amanhã? Estou ansiosa. Bjo, Ju.” Ele disse que era uma colega de trabalho nova que estava preocupada com a reunião importante que teriam no dia seguinte. Ela argumentou que uma colega de trabalho não escrevia algo daquele tipo. Ele rebateu dizendo que a menina era nova no escritório e que não tinha ainda a malícia que a maioria poderia ver em suas palavras. A crise estava instaurada. Ele fez juras de amor eterno, disse que nunca faria algo do tipo, que jamais a traiu, blá blá blá. Ela esbravejou, teve nojo, chorou e no fim sentiu uma dormência que beirava a indiferença. Dois dias depois ele viajaria a trabalho. Passaria três dias fora do Rio. “O afastamento vai servir para acalmar os ânimos”, pensou ele. “Vai viajar com a piranha. Aposto.”, pensou ela.

Assim como quando colocaram chinelo, short adidas e camisetas com dizeres em inglês em índios, ela sentia uma estúpida invasão do desconhecido, a perda irrevogável da inocência. Ela era perfeita para ele, sabia que não existia no mundo alguém que o admirasse e tratasse tão bem como ela. Por que ele a trairia? Ela estava feia, desleixada? Seria porque engordou 2 kg desde que começaram a namorar? A primeira reação foi se culpar. Pensava que algo nela estava errado, perdendo a luz.
Nunca se sentiu preparada para algo. Ia de peito aberto ao encontro da ponta da faca. Os ferimentos seriam como palavras escritas em um diário aberto, expostas na internet. Entregou-se completamente a ele, abriu as entranhas como nunca fizera antes. Agora perdia o chão, caindo em um precipício sem fim. Três intermináveis dias em que evitou ao máximo lembrar dele. Em vão. Permanecia atrás de respostas que talvez nunca viessem. Muitas vezes não se busca a solução para os problemas e sim a identificação. Sentir-se retratado pelo outro consola no sentido de que não se está sozinho nesse mundo. É o conforto da compreensão verdadeira de outrem. Porém não tinha coragem de contar a mais ninguém. Mesmo sem a certeza absoluta, algo lhe dizia que era um fato.

Buscou Felipe no aeroporto. O caminho até a casa dele foi feito praticamente em silêncio, interrompido apenas por uma sucessão de xingamentos proferidos contra um motorista de ônibus que deu uma fechada criminosa nela.

Entrar no apartamento dele foi praticamente automático.

Felipe a beijou, ela aceitou, porém logo em seguida o afastou bruscamente. Não conseguiria seguir em frente sem esgotar tudo o que queria dizer e ouvir.

Ela expôs mágoas que remetiam há 3 anos passados. Ele reclamou da forma displicente com que ela tratava a carreira dele. Ela rebateu dizendo que depois de tanto tempo ainda não se sentia à vontade com a família dele e ele era o culpado. Ele alfinetou com insinuações de que o ex-namorado dela se fazia de amigo e só ficava à espera de uma oportunidade. Ela disse que ele não se preocupava mais com as preliminares. Ele disse que ela também. Ela confessou que sentia falta do carinho dele quando terminavam de transar. Ele silenciou. Ela deixou o corpo cair no sofá em um movimento de puro cansaço emocional. Ele um homem de 35 anos. Ela 2 anos mais nova. Ambos exaustos de términos, começos, solteirices, novos planos, frustrações e ciclos que se repetiam infinitamente. Resquícios naturais deixados pela juventude.

Ele estava chorando. Ela tinha visto isso acontecer apenas uma vez. Levantou-se e foi abraçá-lo.

Só é crise quando ainda existe amor. O resto é desesperança.



Ernesto Xavier

domingo, 18 de outubro de 2015

O HOMEM MATEMÁTICO



O homem em seus devaneios quase matemáticos calcula os passos, cada palavra a ser dita, respostas e variáveis para o diálogo, traça a parábola que o levará até ela, se diminui, depois bebe e se multiplica de forma exagerada, na tentativa da coragem inalcançável na sobriedade.

Encostado no balcão ele fita a presa com um olhar discreto. Apenas para as análises preliminares. Sente algo diferente, como se pudesse imaginar claramente que futuro teriam juntos: a cor da casa e do carro, o nome dos filhos, a cidade preferida nas férias, a música que tocaria na entrada dela no casamento, sua comida favorita e quem sabe até qual filme do Woody Allen ela gosta mais. 

Suposições que o homem matemático faz enquanto calcula suas possibilidades, probabilidades.
O homem matemático é capaz de se apaixonar várias vezes ao dia. Seu prazer não está na conquista e sim nas fantasias criadas em alguém que vê em um vagão do metrô, numa sessão de cinema francês à tarde em Botafogo ou em um chopp com os amigos em Santa Teresa. Não há hora ou lugar. São trocas de olhares que ele vai colecionando em sua estante emocional de relacionamentos nunca consumados. Juras de amor eterno que não foram ditas, rompantes de ciúme que jamais chamarão a atenção dos transeuntes, demonstrações de afeto que não serão invejadas pelas amigas dela, pois nunca aconteceram.

A vida do homem matemático(ou quase) é bem agitada. Ele não terá histórias reais para contar na mesa do bar, porém dirá com profundo pesar que deixou a mulher de seus sonhos escapar num ponto de ônibus, quando ela ao entrar em seu coletivo olhou sorrateiramente para trás, cruzou seus olhos com os dele e fez daquele segundo em silêncio a mais bela poesia que ele já ouvira. Ela partiu Barata Ribeiro abaixo enquanto ele se postava impávido vendo a perfeita mãe para seus filhos partir sem deixar um número ou contato do facebook. Talvez se o tivesse, descobriria que eles tinham em comum uma amiga que estudou com ele no primário do Andrews e também um fortão que fez natação com ele no Fluminense há 4 anos passados. Fortão que costumeiramente comentava as fotos dela. Seria alguma espécie de ficante sazonal? O homem matemático não mensurava o tamanho da decepção que teria com uma confirmação dessas. Resolveu nem pensar. E como poderia? Não tinham trocado nem um “oi”.

Os amigos do homem matemático gostam dele assim mesmo.  Já tentaram mostrar para ele que os relacionamentos são mais humanos ou biológicos do que exatos. Mas ele insistia em dizer que preferia encontrar o valor do seu “x” dentre tantas variáveis ao invés de ser enganado por prosopopéias ou versos alexandrinos. Vivia o rigor de suas fórmulas, sabia projetar o resultado de cada relacionamento dos amigos, embora não tivesse feito o mesmo em sua vida.


O tempo também passará para o homem matemático. Assim talvez veja que a direção a seguir não será uma questão de vetores e que no amor, para multiplicar é preciso em primeiro lugar dividir. 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

MEA CULPA



Mulher,

Quero pedir desculpas. Não que eu possa responder por outros, mas me sinto na obrigação de fazê-lo. Falo por mim. Portanto, escreverei na primeira pessoa.

Por minha causa foi necessária a criação de vagões exclusivos para que você pudesse viajar sem o temor de ser abusada sexualmente, empurrada, ameaçada.

Por minha culpa você tem medo de andar sozinha à noite. Não precisa mais temer a roupa que irá usar. Não mais vou achar que está me provocando e nem tentarei estupra-la ou falarei frases constrangedoras como:
“Te chupava todinha”, “Essa deve enlouquecer na cama”, “Quer segurar aqui?”, “Gostosa”, “Safada” e outras do tipo.

Por minha culpa e consentimento de amigos, os seus salários são inferiores ao meu. Perdão. Também não usarei a desculpa de que tenho que trabalhar mais enquanto você está de Licença Maternidade. Você fica exausta, eu não te ajudo como deveria e ainda faço pouco caso. Não são férias, eu sei.

Sei que sou culpado pela morte de muitas de vocês. Não mais morrerão por minhas mãos. Nem precisa se sentir intimidada por me denunciar. Assumirei a culpa por meus atos.

Por minha total culpa você não pôde escolher o que fazer com seu corpo. Não te incriminarei se quiser ou precisar abortar. Assumo que o crime está nas inúmeras vezes que te abandonei ao saber que estavas grávida. Joguei sempre em ti a responsabilidade total dos filhos. Não posso medir o tamanho do trauma por colaborar para que você passasse por isso. Estarei ao seu lado seja lá qual for a decisão. Prometo.

Enquanto você varria a casa, eu descansava. Você estava lavando louça e eu dedicava mais tempo aos estudos. Você passava roupa e eu via o noticiário. Desigual, não? Eu criei essa cultura de propósito. Assumo que agi errado.

Você escolhe se quer fazer cesariana ou parto normal. Também não vou te expulsar ou assediar se quiser amamentar em locais públicos. É um direito seu que eu tirei. Fiz parecer que você deveria se envergonhar por isso.

Eu te impus uma luta estressante contra seu próprio corpo. Ao mesmo tempo exaltei as minhas imperfeições como se fossem o resultado de uma vida gloriosa. Esqueça disso. Sinta-se bem e bonita como você é. Culpa minha, eu sei.

Quem sou eu para opinar sobre assuntos totalmente seus? Não passo os seus medos, não menstruo e nem fico grávido, não tenho tantas alterações hormonais, não sou assediado em cada esquina, não sou pressionado a trabalhar, cuidar dos filhos, da casa e ainda estar bonita e disposta para transar.

Por minha causa você é taxada de piranha, puta e galinha quando fica com alguém e eu sou festejado por fazer sexo com várias.

Também por minha conta criaram material pornô voltado apenas para o público masculino, sempre subjugando as mulheres.

Sei que durante muito tempo eu disse que vocês não eram capazes, não chegariam longe, diminuí a autoestima e humilhei quando quis. Sei disso. Desculpa.

Eu ajudei a criar mecanismos que dificultassem sua ascensão em empresas, na política e até na arte.

Joguei a culpa em você por dirigir mal, mesmo sabendo que 80% dos acidentes com ou sem vítimas envolvem motoristas do sexo masculino.

Por minha causa tratamos as mulheres transexuais como uma sub-raça. Não só isso. Matamos, batemos, não damos a elas acesso à educação e trabalho.

Eu ajudei a te fazer esquecer ou ignorar o sentido do dia 8 de março. Aproximadamente 130 mulheres morreram carbonizadas naquela fábrica, em Nova York, em 1857, apenas porque reivindicavam igualdade e melhores condições de trabalho. Maquiei esse dia apenas te dando flores.

Sei que é fácil pedir desculpas depois de tanto tempo tratando você assim, mas queria ao menos estabelecer uma relação mais saudável a partir de agora. Você tem todos os motivos para não aceitar ou acreditar no meu pedido de perdão. Errei durante muito tempo. É difícil confiar em mim.

É fácil estar no papel do opressor, já que posso desqualificar o que julgo estar abaixo de mim e imponho minha vontade pela força física, mental ou social. Faço isso há milênios. Literalmente.

Empodere-se.  Tentei tirar seu poder, mas ele é nato.

Não vou mais desmerecer, nem ridicularizar sua luta. Ela existe porque eu existo e ainda sou como sou.

Minhas sinceras desculpas,

Ernesto Xavier



. 10 de outubro - Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher





segunda-feira, 5 de outubro de 2015

CANTO DE DOR



Ao sair pela madrugada fria de julho a rua era só silêncio. As luzes amarelas mostravam o caminho a percorrer. Para trás deixava parte de si. Suas partes mais importantes, na verdade. Doía deixar duas crianças sozinhas. Uma menina de 12 e um garoto de 8 anos. A mais velha tinha a responsabilidade de cuidar do menor. Rosângela, ou Rose, como era conhecida em Antares, onde vivia e no trabalho, olhava apenas para frente, pois se fraquejasse desistia e voltava para o aconchego deles.

O ex-marido tinha sido preso por roubo há 4 anos. Ela se sentia aliviada porque não apanhava mais. Denunciar, em sua cabeça, seria o mesmo que assinar a própria sentença. Quem protege uma mulher negra na favela? Quem iria mantê-lo afastado dela e das crianças?

O horizonte que ficava azul aos poucos a levava a pensamentos distantes. O que a teria levado até ali? Por que precisava criar os filhos dos outros para que pudesse dar o de comer para os seus próprios filhos? Quem criava os seus? Deixaria para eles o mesmo legado de desesperança? Mantinha-se firme para que não a vissem tropeçar. Fazia questão de não dormir no trabalho para ter ao menos alguns instantes com eles. Queria fazer alguma diferença.

Mantinha contato constante pelo celular com Luísa, a filha mais velha, para saber como estavam. Seu corpo estava longe, mas a alma cercava os filhos para protege-los.

O que seria ter liberdade? Não sabia, pois tudo a sua volta lhe impunha limites quase intransponíveis. Não podia ir onde quisesse. Não tinha estudo para mudar ou crescer no trabalho. Não tinha dinheiro. Não tinha mais forças para sonhar. Se sentia presa ao chão para sempre. Seu maior medo era deixar essa herança para os filhos.

O seu dia era marcado pelo pensamento distante, o trabalho incessante, o carinho que tinha pelo filho dos patrões.

No ônibus ao retornar ligou o rádio no celular como de costume. Conseguiu um espaço em pé após uma disputa corporal entre homens e mulheres. Vencia o mais forte. Atrás dela um rapaz que aparentava 25 anos fazia movimentos na tentativa de sentir seu corpo. Ela gritou. Todo o ônibus olhou em sua direção. O rapaz desistiu e fingiu que nada tinha acontecido. Era a selva. Ela era a leoa defendendo o alimento dos filhotes. Conseguiu ouvir no noticiário que um confronto entre policiais e traficantes tinha ocorrido na comunidade onde vivia. Não chegava a ser uma novidade, mas nada tirava o aperto de seu peito. A preocupação com quem havia deixado em casa. Segurava o terço dentro da bolsa e pedia a Nossa Senhora das Dores que protegesse os seus.

Ouviram os primeiros tiros longe dali. Mesmo assim se puseram deitados no chão. Aos poucos os estampidos ressoavam cada vez mais próximos. O barulho de motos passando em disparada chamaram a atenção do garoto. Levantou-se para vê-las passar. Luísa não teve tempo de reagir. Patrick recebeu o impacto no peito e caiu no chão. O tiro havia atravessado a janela. Fulminante. Por cerca de 10 minutos ninguém sabia o que tinha acontecido dentro daquela casa. Todos estavam escondidos dentro das suas e pouco poderiam saber sobre o que passava do lado de fora. Os sons de tiro cessaram. As sirenes das viaturas estavam distantes. O grito de horror e desespero de Luísa invadiu todas as casas ao redor.

Na favela nenhuma bala é perdida.

Rose apertava o passo para chegar em casa. Queria ter estado perto dos pequenos quando a guerra teve lugar. Ela não via mais nada. Tentava abrir espaço na multidão. Aos solavancos passava. Todos parados a olhar a tragédia. O faziam por curiosidade, pena, desespero, alívio. Assistir as mazelas humanas de fora dá a dúbia sensação de pertencimento, por saber que aquela é também sua realidade, mas ao mesmo tempo alívio, pois sabe-se que ao menos dessa vez você não foi o atingido. Por mais que muitos ali sentissem o acontecido, só ela teria a real noção de sua dor. Apenas ela deixaria de dormir seguidas noites em prantos. Ela se culparia. Ela carregaria o peso da ausência, a opressão do vazio.

- É minha casa. Por que estão na frente da minha casa? Deixem eu ver meus filhos! Meus filhos. Meus filhos.

Parou.

O que estava acontecendo? Por que tanta gente? Por que os policiais na sua porta?

Tentaram impedir que entrasse.

- É minha casa!
- Mãe!!! – gritava Luísa lá de dentro. Abriram para que a mãe passasse.

Viu o pano branco sobre o corpo caído. Acreditar em que? Se apegar a quem? Onde consolar-se?
Um grito sem som. Olhar perdido. O silêncio de sua dor inundava a favela.

Queria traze-lo de volta para sua barriga, onde ele estaria sempre protegido. Ninava o corpo inerte e cantava uma música de dormir inteligível. Era como uma oração própria, só compreendida por eles. Balançava para frente e para trás. Enquanto isso os abutres empoleiravam-se na janela para ver a cena. Tiravam fotos para colocar na capa do jornal no dia seguinte. Mais uma história para a conta.

Suas mãos, de parcas forças, já haviam carregado bebês alheios, mexido panelas, segurado enxadas e agora tentavam enxugar seu desespero.

Deveria ser proibido mãe enterrar filho.





Ernesto Xavier
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