Por Ernesto Xavier
Parar de fumar tinha sido o mais difícil. O cigarro a
acompanhava desde os 19 anos. No início era só uma forma de parecer menos
menina. Depois começou a ser o companheiro das noites insones escrevendo
projetos da faculdade. No aeroporto de Congonhas ela se preocupava com o
relógio. Havia poucos dias do início do horário de verão e ela tradicionalmente
demorava a se adaptar. Quando se sentia à vontade, acabava, já era março. A
ansiedade levava a mão à bolsa, procurando o maço. A frustração vinha com a
lembrança imediata, ‘não posso fumar, você parou’. Check-in feito, embarque, decolagem, Rio de
Janeiro, aeroporto Santos Dumont. Não tinha medo de avião, mas daquela vez
teve. Tudo por conta de seis semanas que
já mudavam a vida.
No Rio, o irmão mais velho a esperava para irem direto à
Teresópolis. Ela era a filha do meio, enquanto a mais nova, o motivo da vinda,
estava prestes a casar. Tinha saudade do Rio. Poder andar de Havaianas na rua
sem ser julgada, se vestir com menos culpa, dar alívio à pele com a maquiagem,
beber cerveja em pé no Baixo Gávea. São Paulo dava dinheiro. Fazer o que? Não é
todo dia que uma biomédica consegue um salário tão bom. Falta da família? Sim,
principalmente aos domingos. Porém morar sozinha era inigualável. A louça parou
de ser uma obrigação diária. Lavava quando queria. Quem reclamaria? O pão
integral não sumia repentinamente da geladeira. Nada de ser acordada em um dia
de folga por conta de uma “emergência”, que no fim poderia ser resolvida por
qualquer um. Estava isenta de perguntas como: Dormiu onde? Vai sair com quem?
Está indo pra onde? Está levando o guarda-chuva?
Sentiu falta de alguém no dia em que esqueceu a chave do
apartamento no trabalho e não tinha a quem recorrer. Retornou ao laboratório no
trânsito de São Paulo. Uma chave não valia mais do que sua liberdade.
Subindo a serra pediu duas vezes que parasse para fazer
xixi. Sintoma da gravidez. Ela mesma tinha feito o exame. Guardaria o segredo
até quando não mais pudesse ou se criasse coragem de enfrentar os julgamentos.
Eles viriam. 32 anos e ela era questionada por não ter ao menos um namorado.
Marido era um sonho distante que a mãe cultivava. As tias especulavam que ela
fosse lésbica, ‘Hoje em dia esse povo anda tão moderno. Pode tudo, né?!’. Ela
fingia que não ouvia e que não entendia os olhares maldosos sempre que chegava
para os encontros de família sozinha.
Encontrar o ex-namorado pouco mais de um mês antes não foi
algo premeditado. Ela imaginava que ele iria ao show do Jack Johnson, mas daí
encontrá-lo no meio de outras oito mil pessoas já seria contar com a sorte...ou
azar. Encontrou. Ficaram. E daí?, pensou. Ele ainda morava com os pais. Terminaram
a noite no apartamento dela. Preferia assim. Prefere acordar e saber onde está,
poder ir ao banheiro de madrugada mesmo no escuro ou andar pelada pela casa sem
receio de encontrar um garoto de 15 anos jogando videogame na sala.
Foi uma obra do acaso, ela sabia. Não estranhou, mesmo que
por dentro a magoasse, o fato dele não ter dado mais notícias após aquela
noite. Nenhum telefonema ou mensagem de texto. Mesmo forte, ela não gostava de
se sentir usada.
Azia.
A alimentação era a mesma de sempre, porém o cheiro do
cigarro passou a enjoá-la. Já sabia o que era. Fez o exame só para ter certeza.
-Como assim, grávida?
-Ué...sexo pode dar nisso, sabia?
-Você tem certeza que é meu?
Respirou fundo. Calou quando em outro momento expressaria
com um sonoro “Filho da puta!”.
-Tenho.
-Você quer mesmo ter?
Ela desligou o telefone. Ele tentou ligar mais algumas vezes
naquele dia, mas logo parou. Não queria comprometer um caso que estava tendo
com uma mulher do trabalho. O “revival” com a ex tinha sido inevitável, dadas
as circunstâncias, ele pensava.
Ela chorou dois dias seguidos. Não falou com ninguém. No
terceiro dia teve uma consulta de emergência com a terapeuta. Falou por 40
minutos sem ser interrompida. Sentia-se exausta. Não era só o fato de ser
abandonada por um homem com quem dividiu a cama por quase dois anos, mas por se
culpar por ser independente, ativa, bem-sucedida, enquanto a mãe e as tias
tinham sido apenas sombras toscas dos maridos, mulheres frustradas, que talvez
quisessem o mesmo para as filhas. Tinha medo de ser como elas. Sentia culpa por
saber que o seu sucesso as decepcionaria. ‘Sabia que isso ia acontecer. Com
barriga e sozinha.’, elas diriam.
- O que essa gravidez representa pra você? Está te gerando
angústia poder criar essa criança sozinha?, perguntou a terapeuta.
Os olhos encheram de água. Nada falou.
Vomitou no banheiro da festa de casamento da irmã. Ninguém
viu. Não bebeu naquele dia. Entrou no altar acompanhada de um dos primos.
Tinham tido um casinho na adolescência que não foi adiante. Os pais nem podiam
imaginar. Gostavam da sensação de perigo que aquilo gerava. Depois de um tempo
aquela adrenalina perdeu a graça. Eram adultos, precisavam seguir. Ele estava
divorciado. Casou cedo com uma amiga de faculdade, mas a ex-esposa um dia chegou
até ele e disse que estava indo embora. Para ele, naquele instante, parecia ser
sem motivos, mas ela já o traía há mais de um ano com um homem que conheceu na
internet. Foi viver com ele.
Seria fácil em outras circunstâncias ficarem juntos naquela
noite, no entanto, apenas conversaram. Amanheceram juntos na varanda da casa da
família. Choraram, confessaram segredos, desabafaram como nunca tinham feito.
Descobriram que não sabiam quem era o outro até ali. Ela voltou para São Paulo.
Ele para o Rio de Janeiro.
Na segunda-feira acordou sentindo dores muito fortes na
barriga. Não conseguia dirigir. Foi de táxi para o hospital. Não seria mãe
daquela vez. A pior dor era a da perda. A família nunca saberia da gravidez.
Ela carregaria a história para sempre.
O vazio que ficava aos poucos seria preenchido de
amor-próprio, onde antes houve mágoa e rancor. Um morreu para que ela
renascesse. Uma vida se deu para que ela entendesse o valor que a vida tem.
O celular apitava com a mensagem:
"Estarei em SP na semana que vem. Te vejo? Ass. Primo."
Sorriu.