terça-feira, 29 de outubro de 2013

LIVROS

Por Ernesto Xavier


De vez em quando o que mais me angustia é sentar na biblioteca e observar todos aqueles livros estáticos...parados olhando para mim. O ambiente mais solitário e depressivo do mundo. Os autores e suas histórias, esquecidos em estantes a espera de olhos que vejam suas palavras e que por alguns segundos possam sentir aquilo que estará gravado naquele local para sempre. Os livros retêm sentimentos e só podem gritar, colocar seus problemas para fora quando alguém lhes dá atenção. Eles não podem escolher o momento em que desejam desabafar...são escravos de suas próprias histórias, prisioneiros das palavras que carregam. Olho para eles e choro...ouço seus pedidos, atendo as suas reclamações e logo depois viro as costas e como um carcereiro, novamente os fecho em uma cela. Fecho a deles ao mesmo tempo em que volto a minha...não sou um livro, mas sei que durante todo aquele tempo em que estive ali, contemplando e deles sentindo pena, eu na verdade estava pensando em mim.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

SINTOMAS

Por Ernesto Xavier

Parar de fumar tinha sido o mais difícil. O cigarro a acompanhava desde os 19 anos. No início era só uma forma de parecer menos menina. Depois começou a ser o companheiro das noites insones escrevendo projetos da faculdade. No aeroporto de Congonhas ela se preocupava com o relógio. Havia poucos dias do início do horário de verão e ela tradicionalmente demorava a se adaptar. Quando se sentia à vontade, acabava, já era março. A ansiedade levava a mão à bolsa, procurando o maço. A frustração vinha com a lembrança imediata, ‘não posso fumar, você parou’.  Check-in feito, embarque, decolagem, Rio de Janeiro, aeroporto Santos Dumont. Não tinha medo de avião, mas daquela vez teve.  Tudo por conta de seis semanas que já mudavam a vida.
No Rio, o irmão mais velho a esperava para irem direto à Teresópolis. Ela era a filha do meio, enquanto a mais nova, o motivo da vinda, estava prestes a casar. Tinha saudade do Rio. Poder andar de Havaianas na rua sem ser julgada, se vestir com menos culpa, dar alívio à pele com a maquiagem, beber cerveja em pé no Baixo Gávea. São Paulo dava dinheiro. Fazer o que? Não é todo dia que uma biomédica consegue um salário tão bom. Falta da família? Sim, principalmente aos domingos. Porém morar sozinha era inigualável. A louça parou de ser uma obrigação diária. Lavava quando queria. Quem reclamaria? O pão integral não sumia repentinamente da geladeira. Nada de ser acordada em um dia de folga por conta de uma “emergência”, que no fim poderia ser resolvida por qualquer um. Estava isenta de perguntas como: Dormiu onde? Vai sair com quem? Está indo pra onde? Está levando o guarda-chuva?
Sentiu falta de alguém no dia em que esqueceu a chave do apartamento no trabalho e não tinha a quem recorrer. Retornou ao laboratório no trânsito de São Paulo. Uma chave não valia mais do que sua liberdade.
Subindo a serra pediu duas vezes que parasse para fazer xixi. Sintoma da gravidez. Ela mesma tinha feito o exame. Guardaria o segredo até quando não mais pudesse ou se criasse coragem de enfrentar os julgamentos. Eles viriam. 32 anos e ela era questionada por não ter ao menos um namorado. Marido era um sonho distante que a mãe cultivava. As tias especulavam que ela fosse lésbica, ‘Hoje em dia esse povo anda tão moderno. Pode tudo, né?!’. Ela fingia que não ouvia e que não entendia os olhares maldosos sempre que chegava para os encontros de família sozinha.
Encontrar o ex-namorado pouco mais de um mês antes não foi algo premeditado. Ela imaginava que ele iria ao show do Jack Johnson, mas daí encontrá-lo no meio de outras oito mil pessoas já seria contar com a sorte...ou azar. Encontrou. Ficaram. E daí?, pensou. Ele ainda morava com os pais. Terminaram a noite no apartamento dela. Preferia assim. Prefere acordar e saber onde está, poder ir ao banheiro de madrugada mesmo no escuro ou andar pelada pela casa sem receio de encontrar um garoto de 15 anos jogando videogame na sala.
Foi uma obra do acaso, ela sabia. Não estranhou, mesmo que por dentro a magoasse, o fato dele não ter dado mais notícias após aquela noite. Nenhum telefonema ou mensagem de texto. Mesmo forte, ela não gostava de se sentir usada.
Azia.
A alimentação era a mesma de sempre, porém o cheiro do cigarro passou a enjoá-la. Já sabia o que era. Fez o exame só para ter certeza.
-Como assim, grávida?
-Ué...sexo pode dar nisso, sabia?
-Você tem certeza que é meu?
Respirou fundo. Calou quando em outro momento expressaria com um sonoro “Filho da puta!”.
-Tenho.
-Você quer mesmo ter?
Ela desligou o telefone. Ele tentou ligar mais algumas vezes naquele dia, mas logo parou. Não queria comprometer um caso que estava tendo com uma mulher do trabalho. O “revival” com a ex tinha sido inevitável, dadas as circunstâncias, ele pensava.
Ela chorou dois dias seguidos. Não falou com ninguém. No terceiro dia teve uma consulta de emergência com a terapeuta. Falou por 40 minutos sem ser interrompida. Sentia-se exausta. Não era só o fato de ser abandonada por um homem com quem dividiu a cama por quase dois anos, mas por se culpar por ser independente, ativa, bem-sucedida, enquanto a mãe e as tias tinham sido apenas sombras toscas dos maridos, mulheres frustradas, que talvez quisessem o mesmo para as filhas. Tinha medo de ser como elas. Sentia culpa por saber que o seu sucesso as decepcionaria. ‘Sabia que isso ia acontecer. Com barriga e sozinha.’, elas diriam.
- O que essa gravidez representa pra você? Está te gerando angústia poder criar essa criança sozinha?, perguntou a terapeuta.
Os olhos encheram de água. Nada falou.
Vomitou no banheiro da festa de casamento da irmã. Ninguém viu. Não bebeu naquele dia. Entrou no altar acompanhada de um dos primos. Tinham tido um casinho na adolescência que não foi adiante. Os pais nem podiam imaginar. Gostavam da sensação de perigo que aquilo gerava. Depois de um tempo aquela adrenalina perdeu a graça. Eram adultos, precisavam seguir. Ele estava divorciado. Casou cedo com uma amiga de faculdade, mas a ex-esposa um dia chegou até ele e disse que estava indo embora. Para ele, naquele instante, parecia ser sem motivos, mas ela já o traía há mais de um ano com um homem que conheceu na internet. Foi viver com ele.
Seria fácil em outras circunstâncias ficarem juntos naquela noite, no entanto, apenas conversaram. Amanheceram juntos na varanda da casa da família. Choraram, confessaram segredos, desabafaram como nunca tinham feito. Descobriram que não sabiam quem era o outro até ali. Ela voltou para São Paulo. Ele para o Rio de Janeiro.
Na segunda-feira acordou sentindo dores muito fortes na barriga. Não conseguia dirigir. Foi de táxi para o hospital. Não seria mãe daquela vez. A pior dor era a da perda. A família nunca saberia da gravidez. Ela carregaria a história para sempre.
O vazio que ficava aos poucos seria preenchido de amor-próprio, onde antes houve mágoa e rancor. Um morreu para que ela renascesse. Uma vida se deu para que ela entendesse o valor que a vida tem. 
O celular apitava com a mensagem:
"Estarei em SP na semana que vem. Te vejo? Ass. Primo."
Sorriu.
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