segunda-feira, 25 de novembro de 2013

MELHORES AMIGAS

Por Ernesto Xavier

- Eu vou pedir um café, ta bom?
-Vou querer um também.
- Dois cafés, por favor.
- Você pega o café pra mim? Vou ao banheiro rapidinho.
Ele sai. Vai até o banheiro, lava o rosto e fica um tempo se olhando. Acha-se um homem de sorte. Começou um novo relacionamento há 2 meses com uma mulher linda de 27 anos, arquiteta bem sucedida. Ele, dois anos mais velho, advogado, trabalha para uma empresa com filiais em quase todo o país, viaja bastante, conhece meio mundo e se considera estável. Namorou por 4 anos Milena, que estagiou com ele em um escritório no Centro do Rio. Chegaram a ficar noivos e quando ele se sentiu pressionado a casar, fugiu. Considerava-se novo, despreparado para tal, ainda querendo viver a solteirice. Foi ficando frio, distante, até que terminou. Após um ano solteiro, curtindo festas em São Paulo, Rio, Bahia, Brasília, gastando todo o salário em noitadas, conheceu Letícia, a atual namorada. De cara percebeu que seria algo diferente. Pela primeira vez após tanto tempo entrou em contato com alguém após conhecê-la em uma festa. Antes procurava não manter qualquer vínculo. Foi difícil conquistar a atenção dela. Letícia ou Lelê demorava a retornar as ligações, muitas vezes não respondia mensagens, recusava alguns convites para sair, alegando que estava estudando para um concurso importante. Isso o deixou louco. Queria entender porque ela era assim.  A dificuldade o prendeu. Quando menos esperava, estava fisgado, de quatro por ela. Uma mulher que o fazia querer se superar sempre. Tentava fazê-la rir, ser carinhoso sem ser pegajoso, ter um bom papo, não parecer um ogro, ver menos jogos do Fluminense, fazê-la gozar antes dele, ouvi-la, se vestir bem...
Agora seca o rosto e sai do banheiro. Ao olhar para a mesa vê a namorada conversando entusiasmadamente com outra mulher.
- Olha só quem eu acabei de conhecer: Milena.
- Oi, Marcelo. Quanto tempo! Tudo bem?
Ele completamente desnorteado, sem saber o que dizer, responde:
-Tudo. O café chegou?
-Tá aqui, Celo. – responde a namorada – Eu a reconheci na hora. Já tinha visto em umas fotos no facebook da sua irmã. Milena, você é muito mais bonita pessoalmente.
- Bondade sua. Eu que tenho que dizer isso. O Celo tem mesmo bom gosto.
- Eu tava aqui falando com ela e a convidei pra sentar com a gente.
- Mas a gente já não estava de saída? – disse suando frio.
- Qual o problema da gente ficar um pouco mais? O papo tá tão bom.
Ficaram mais uma hora no restaurante. Ele praticamente mudo, respondia “sim”, “não”, “talvez”. Elas em conversa com intimidade de amigas de infância praticamente ignoravam a presença dele na mesa. Se não tivesse avisado que iria novamente ao banheiro, talvez nem tivessem visto que se levantou. O desespero por ver aquele encontro se dava por não querer ter sua intimidade exposta. À sua frente estavam duas histórias que agora se cruzavam e muito delas dizia respeito a si. Não só assuntos de alcova, mas também manias, imperfeições e deslizes. Uma tinha muito material a expor, enquanto a outra deveria ter suas impressões, boas ou ruins, que poderiam ser confirmadas ou detonadas pela ex. Sabia que tinha sido covarde em muitos momentos com a primeira e fazer com que a segunda soubesse disso e desse crédito, poderia arruinar um castelo que ele começava a erguer.  
Ao voltar do banheiro viu que elas agora tinham feições mais sérias. Aproximou-se e elas encerraram o assunto.
-Vamos indo, Marcelo?
-Vamos.
-Bom te ver, Marcelo. Adorei te conhecer, Milena.
Despediram-se. Foram para a casa dela. Milena seguiu seu caminho.
-Nossa...parecia que a gente já se conhecia há muito tempo.
-É. Ela é assim: se dá com todo mundo, cria intimidade rápido.
-Achei super natural. Nada forçado. Aliás, as coisas que você me falava dela não são verdade.
-Que coisas?
-Agora vai se fazer de desentendido? Você dizia que ela ainda era louca por você, que te procurava, mas você dizia que não queria mais nada, que ela era pegajosa, ciumenta...
-Eu não falei com esse peso todo, nesse tom.
-Pode não ter falado assim, mas foi a impressão que me passou. E ela me pareceu bem tranqüila, falou super bem de você...
-Falou? O que?
-Ai, to cansada. Queria dormir sozinha hoje. Você não fica chateado?
-Não, mas... O que foi que ela disse?
-Nada demais. Depois a gente fala disso, ta?
 Ele partiu com mil perguntas entrando e saindo de sua cabeça. Dormiu mal aquela noite. Sonhou com Letícia tentando enforcá-lo, enquanto Milena observava de perto e ria. Acordou arfando. Esperou dar 11h da manhã para ligar para a ex-namorada. Sabia que em um domingo esse seria o mínimo para encontrá-la acordada. A lembrança dela acordando com seus grandes olhos pretos ainda inchados e a boca de lábios finos que abria subitamente em bocejo o fizeram sentir saudade. Muito dela ainda permanecia nele.
-Milena?
-Oi, Celo. Ta tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
-Ainda não. É que foi meio estranho aquele encontro ontem, não foi?
-Foi diferente. Me surpreendi com a sua namorada. Gostei muito dela.
-Ela é legal mesmo. Mas...vocês falaram de mim?
-Sim. Por que?
-Eu sei que você ficou chateada quando terminei contigo. É que eu agora estou entrando em um relacionamento novo e tenho medo do meu passado estragar tudo.
- Você acha que eu quero te prejudicar? Nunca faria isso. Você me fez muito mal sim. Mas passou, cresci. Eu me tornei mulher ao seu lado. Tenho também muito a te agradecer. Você foi um cara paciente, companheiro. Depois quis outras coisas. Hoje eu entendo isso.
-Desculpa.
-Não precisa disso. Vou ter que desligar. Tenho que sair agora.
-Cedo assim? Ta de namorado novo também?
-Não. Vou encontrar a sua.
-Como assim: a minha?
Viraram amigas de verdade. Foram madrinhas de casamento uma da outra. Nenhuma casou com Marcelo. O namoro com Letícia ainda durou mais 4 meses, totalizando 6. Eram muito diferentes. Chegou uma hora que as incompatibilidades ficaram expostas. O personagem que ele criou no início não se sustentou por tanto tempo. Não dá. Era um cara legal, dizia Lelê, só não era pra ela.
Um ano depois do término foi com amigos ao mesmo restaurante onde o encontro das novas amigas aconteceu. Lá estava Letícia sentada em uma mesa, tomando um chá.
-Sozinha?
-Não. Vim com uma amiga.
Milena vem do banheiro. Ele a cumprimenta e volta para a mesa dos amigos. No caminho de casa pensou em quanto deixou para trás. De alguma forma tinha feito bem à vida daquelas duas mulheres com quem ele um dia havia feito planos. Planos estes que não se concretizaram. Quantos se perdem pelo caminho? Ele já não gastava todo seu dinheiro em noitadas. Pensava com mais responsabilidade sobre a vida que queria seguir. Seria a crise dos 30? Desejou a felicidade para aquelas duas mulheres. E ela viria, com certeza. Ele sabia que um dia encontraria alguém que dividiria intimidades com ele. Seriam companheiros.
 O que elas tinham deixado nele era a semente para o nascimento de um homem.

















sexta-feira, 22 de novembro de 2013

ANTES DAQUELES DIAS

Por Ernesto Xavier

Era sábado. O dia amanhecera com uma chuva fina persistente e a temperatura do lado de fora do apartamento beirava os 20 graus. Paloma acordou por volta de 11h30 da manhã. Tinha ficado até 2h30 conversando por Skype com o “não sabe definir o que”, que as amigas dizem ser seu namorado, mas que ela prefere não rotular, pois tem medo de perder o encanto quando definir alguma coisa. Na verdade, a distância que os separa a impede de dar passos mais largos. Já sofreu em outros momentos, mas a situação em que se encontra é diferente agora.

- Como você quer que eu conte? “Oi, família, estou namorando um cara de São Paulo e ele virá aqui no próximo final de semana para ser apresentado a vocês”. Acha que é assim?
-Sim. Por que não?
-Por que não é assim que as coisas funcionam na minha casa. Ou você esqueceu o que já fez comigo? Acha que eles não sabem de nada? Eu amenizei a história pra não te queimar tanto, mas era impossível esconder deles que alguém tinha me feito mal.
-Tá bom. Eu sei que vou ter que carregar isso pra sempre.
-Vai. Se quiser ficar comigo, sim.

O papo durante a madrugada tinha começado tenso, mas depois se entenderam como sempre acontecia. Tinham a feliz capacidade de acertar os ponteiros conversando. Ambos gostavam de falar e levavam isso a um grau diferente de outros casais. Eram cúmplices e amantes. Não eram “amigos com benefícios” e deixavam isso bem claro. Estavam juntos, mesmo que separados na imensidão de uma estrada ou ponte-aérea que ocorria tão poucas vezes. Se falavam muitas vezes ao dia. Sempre com assunto, que parecia nunca terminar. Um puxava outro, que puxava outro, que puxava...e horas se passavam.
As gotas de água que caiam sobre a caixa do ar-condicionado do seu quarto, bem abaixo da janela, faziam um tilintar que a despertou. Demorava um pouco até entender onde estava, quem era, o que tinha que fazer... Acordar fazia parte de um processo que requeria tempo. Pegou o celular para ver se tinha alguma mensagem dele. Nada. Desceu para o primeiro andar. Não costumava tomar café-da-manhã, mas naquele dia tinha uma fome incomum. Enquanto comia, a mãe passou por ela.

-É por isso que está engordando.
-Bom dia pra você também, mãe.

Largou tudo na mesa e subiu para o quarto. A mãe foi atrás.

-Está com algum problema?
-Mãe, eu não to afim de conversar, ta bom?
-Eu te vejo se empanturrando de comida e não quer que eu fale nada. Pode comer o que quiser, mas depois não vem reclamar, dizendo isso e aquilo.

Segurou a boca para não responder mal a mãe.

-Me deixa sozinha, por favor. Já disse que não to a fim de conversar. Pode respeitar?

Fechou a porta.
Sentia uma vontade enorme de chorar, mas não queria demonstrar fraqueza, mesmo que estivesse sozinha naquele momento. Era como se uma bolha de ar comprimisse seu peito e quisesse subir pela garganta. Pegou o celular e ligou.

- Alô.
-Tá vivo?
-Bom dia.
-Esqueceu que eu existo?
-Não. Eu já ia te ligar.
-Ia, mas não foi.
- Desculpa. Eu tava terminando um trabalho e já ia te mandar uma mensagem.
-Sei.
- Vai se estressar só por isso?
- Só por isso? Você me esquece, não fala comigo, coloca um monte de prioridades na minha frente e ainda acha que o motivo é pequeno? Obrigado!

Ele se segurou o quanto pôde e soltou: “Você está de TPM?”. Sabia que fazer esta pergunta seria motivo para uma briga sem precedentes. A frase saiu quase sem querer. Quis retornar as palavras para a boca, mas estas já tinham atravessado os meios eletrônicos até alcançá-la a mais de 430 km dali. Um no Rio o outro em São Paulo. Ela desligou o telefone imediatamente. Ele tentou retornar as ligações e ela ignorava. Ele sabia o tamanho da encrenca que tinha criado. “Nunca faça essa pergunta a uma mulher, por mais irritada ou errada que ela esteja”, disse sua irmã em tom de aconselhamento para toda a vida. Ele não aprendeu.
À noite ela retornou as ligações. Chorava.

-Você sabe que eu to me sentindo feia, gorda, minha auto-estima ta lá embaixo. Eu me olho no espelho e não me reconheço. To parada no tempo, sem trabalho, sem motivação. Quando eu mais quero você por perto eu não posso ter. Quando a gente se encontra, tenho que relevar um monte de coisas, porque não quero ficar brigando no pouco tempo que temos juntos. Você sabe o dobrado que tenho que passar pra te ver. Custa ter um pouco de compreensão? É tão difícil assim?

Os hormônios agiam sobre ela? Sim. Porém cada conclusão vinha carregada de verdades que ela guardava por querer manter a harmonia entre eles. Não podia segurar tudo e sabia que algum deslize poderia jogar tudo o que tinham fora. Viviam caminhando sobre uma linha tênue, mas algo os prendia.

-Desculpa. Eu fui displicente contigo.
Ela ficou um tempo em silêncio e ele tornou a falar.
-Já disse que você fica linda quando chora? Não estou te vendo agora, mas sei bem como é. Me dá mais vontade ainda de te dar um cheiro.
-Aham. To com a cara toda inchada, descabelada. Muito linda que eu estou.

Ela já falava com um sorriso no rosto e se entregava aos poucos a ele.

- Eu quis mandar flores pra sua casa, mas ia ficar complicado pra você explicar a eles quem tinha enviado. Então vai no meu facebook, por favor. Coloquei uma foto privada só entre nós dois.
Lá estava ele com seu sorriso largo característico e um buquê de rosas colombianas. Ela ria e chorava ao mesmo tempo.

-Olha só. Hoje comi uma barra inteira de chocolate por sua causa. Se eu ficar gorda de verdade, você vai ter que me aturar mesmo assim, ta bom?


Não era TPM, era saudade. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A CARTA



Por Ernesto Xavier

14/01/01

Existe um momento na vida em que todo ser humano pensa na morte. É algo normal. Todo mundo sabe que nasceu um dia, não lembra desse dia, é claro, mas sabe que aconteceu. E também sabe que um dia vai morrer. Pode ser qualquer dia, mas vai acontecer. O que chamamos de vida é este curto espaço de tempo que existe entre a vida e a morte. Isso é óbvio! Todo mundo sabe disso. Mas de tão óbvio acabamos esquecendo. E às vezes ficamos surpresos quando já estamos velhos e temos certeza de que a morte está realmente próxima. Dá para perceber quando aquelas doenças chatas chegam. Não que eu seja um cara velho, coisa e tal. Sou novo. Até bastante. Mas o suficiente para já ter observado bastante gente e visto que o que estou falando é de verdade. Tenho 17 anos e nada de tão extraordinário aconteceu nesse tempo. Também não possuo nenhuma doença grave que possa levar alguém a pensar que estou escrevendo uma carta de despedida ou algo assim. Só que de vez em quando me bate uma tristeza danada e só quando passo isso para o papel é que aquele sentimento parece sair de mim. Não sai totalmente. Ele volta depois de um tempo. Mas pelo menos dá um alívio momentâneo.
Sou o tipo de cara que pensa toda hora na droga da minha vida. Às vezes acho que penso mais nela do que a vivo propriamente dizendo. Mas é algo que não consigo evitar. Quando vejo estou parado que nem um idiota olhando para o nada e viajando na minha história. Fantasio situações que poderiam acontecer comigo. Normalmente são coisas que eu desejaria fazer e não tenho coragem. Como falar pra Luísa que sou apaixonado por ela e não quero só ser seu amigo? Tenho um medo danado dela não querer nem olhar mais na minha cara. Eu adoro a companhia dela. Só de estar do lado já me faz bem pacas. Nós somos capazes de passar umas cinco horas conversando direto sem cansar. Falamos de tudo. Da nossa infância. Da família. Das coisas que acontecem no colégio(nós somos colegas de classe). Sobre o futuro. Ela sabe mais de mim do que meus pais. Só não tem idéia do quanto gosto dela. Só sabe como amigo. Nós vivemos grudados. Os caras da turma falam que ou eu sou uma bicha ou estou gamado na garota e sou um covarde que não tem coragem de falar com a mulher. Os caras não me entendem. E se ela achar que eu traí a confiança dela? Que fiquei me aproveitando da amizade para saber de segredos ou coisas assim? Eu não fiz isso, mas ela pode pensar que sim. Sou amigo dela com sinceridade e não tenho motivos para querer qualquer mal pra Luísa.
Eu sou um cara descolado. Gosto de falar alto, me divertir sem me preocupar com as conseqüências e tenho uma certa popularidade com os amigos. Tiro boas notas no colégio. Menos em física e química. Não sei pra quê aquilo tudo serve. Depois que acabar o 3º ano nunca mais vou ver nada disso. Só isso me consola. Acabar logo esse ano e nunca mais ter que estudar nem química, física ou coisa parecida.
Mesmo não sendo um cara que possa se considerar tímido, quando estou com a Lu (é assim que a chamo) não me vem a coragem necessária pra dizer uma só palavra a respeito de namoro. Falo até de relacionamentos que já tive, e foram muitos, mas nada de ter culhão pra abrir a boca e me declarar pra ela e tirar esse peso que me acompanha.
Foi exatamente por causa da Lu que comecei a pensar na morte pela última vez e me bateu essa tristeza tremenda que me fez escrever essa carta, que não tem destinatário. É só uma forma de terapia. Não se assustem. Não quero me matar por causa dela, nem por nenhuma outra coisa. Mas me bateu uma tristeza quando cheguei a conclusão de que poderia passar minha vida inteira pensando na Lu e não conseguir falar nada pra ela. Eu ia passar minha vida toda sem saber o que é amar alguém e ser correspondido. Eu sei que isso parece coisa de bicha, só que quando percebi já tinha parado um tempão e pensado essas drogas todas. Esse desgaste emocional todo me dá um fome danada. Abri a geladeira e não vi nada de interessante. Foi quando essa droga de pensamento veio de novo e comecei a achar que de repente essa coisa de amar não era algo pra um cara como eu. Sou muito largado com as mulheres. Menos com a Lu. Ela diz que é a única mulher no mundo que me conhece de verdade. Que sou durão com as pessoas só pra manter minha fama. Pode até ser verdade. Mas ver aqueles moleques das séries menores puxando o meu saco me fazem sentir o máximo. Eu gosto disso. Quem não gosta?
Quando eu era mais moleque e estudava nesse colégio, aliás, sempre estudei nesse lugar (conheço cada funcionário), eu admirava um cara do 2º ano que tinha muita popularidade com as garotas. O cara era bonito pra caramba, na verdade nem sei, acho que ele fazia o tipo que elas gostavam: burro e atlético. O cara tinha tanta nota vermelha no boletim que teve que sair do colégio antes do ano acabar pra não ser reprovado. Acabou indo pra um mais fraco e recuperar as notas. Falou que não se adaptou aos métodos da escola. Era burro mesmo. Mas o cara tinha um jeito com as garotas inconfundível. Parece que ele ficava o dia todo penteando aquela merda de cabelo. Nunca vi nada tão liso na vida. Ele andava como se estivesse gingando sempre e olhava no olho das garotas. Elas não resistiam. Passei a observar esse jeito dele e quis imitá-lo. Hoje faço tudo igual. Até que consigo um número razoável de meninas. Faço mais sucesso com as mais novas. Nem tão novas, senão pega mal pra mim. Mas o que importa é que esses truques não funcionam com a Lu. Ela é diferente dessas garotas. Ela é inteligente e de certa forma madura. Ela costuma cuidar do irmão mais novo quando o pai viaja. Ela não tem mais mãe. Na verdade tem, mas fugiu ela não sabe pra onde quando ela tinha uns sete anos. Ela já perguntou mil vezes para o pai por que a mãe fugiu e ele simplesmente fala “não sei”. Deve saber e esconde.
O negócio é que tenho uma pena danada dela. O pai é um cara legal, mas trabalha numa firma de petróleo e fica quinze dias no mar e quinze na terra. Ela acaba ficando só com o irmão grande parte do tempo. O cara ganha bem, mas aposto que ela preferia que ele ganhasse menos e tivesse uma presença maior em casa. O irmão tem 12 anos e está na idade que todo garoto precisa de um homem pra falar certas coisas que só um homem vai saber dizer. Sabe? Aquelas coisas... Eu às vezes fico lá batendo papo com ele. Ele se amarra. Me tem como um irmão. Nós temos bastante tempo pra conversar porque a Lu demora horas pra se arrumar. Quando eu marco um cinema eu a engano e falo que a sessão é uma hora antes do horário original. Se não fosse assim nós sempre perderíamos o filme e acabaríamos voltando pra casa com o rabo entre as pernas. Eu tento falar sobre garotas, futebol e escola com o Marco, irmão da Lu, mas eu tenho só 17 anos. Não sei tanto da vida. Não tenho tanta coisa pra passar pra ele. Enfim, faço o que posso.
A Lu possui uma beleza que acho que só eu consigo decifrar. Que ela é bonita todo mundo vê. Mas só eu sei segredos da beleza dela que nem ela deve perceber. Como ela morde os lábios inferiores de leve quando está sem graça. Ou quando ela franze a testa quando falo alguma besteira. Ou as duas covinhas na bochecha, que só aparecem quando ela sorri bem largo. Ou o cabelo que teima em cair no rosto e que ela joga pra trás das orelhas e que torna a cair. Ou o cheiro do shampoo que ela usa, o perfume, a voz fina e rouca. São tantas coisas que até me descontrolo e saio de si.
Nunca senti nada demais por garota nenhuma, só aquelas paixonites de pré-adolescência. Isso não conta. Depois de um tempo a gente olha pra essas garotas e vê como éramos idiotas em gostar de pessoas tão fúteis e sem conteúdo. Talvez por levar essa imagem na mente, nunca tenha me envolvido de verdade com ninguém nesse tempo todo. Só coisas breves, que duravam de um noite a um mês no máximo. Nada que envolvesse coração. Com ela foi inevitável. Quando percebi já estava caído e não tinha como voltar atrás. Às vezes penso que ela também. Acontece de pararmos nossa conversa sem nenhum motivo e ficarmos nos olhando durante um tempo. Logo um dos dois resolve acabar com aquele clima e introduz algum assunto qualquer que nem precisa ter motivo. O importante é acabar o constrangimento. Pelo menos é assim que penso. Pode ser que ela apenas se desligou do mundo e voltou de repente a si. Por essas e outras não tenho coragem de falar nada. Ela me conhece nos mínimos detalhes e eu não consigo decifrar seus códigos, seus pensamentos, seus desejos. É uma incógnita para mim. Um ser impenetrável. Não que ela seja fria, muito pelo contrário. Mas mulheres são assim mesmo. Difíceis de entender. Eu tenho uma irmã, mãe e avó morando comigo em casa. Eu e meu pai somos os únicos homens da casa. Ele me diz que não consegue entender minha mãe até hoje, mas que eles se dão bem assim mesmo. Acho essa parada maneira. Os homens são mais superficiais, eu diria. As mulheres são extremamente complexas. A começar pela parte biológica. Elas menstruam, tem filhos, produzem leite, tem alterações hormonais a toda hora. Elas se acham gordas e feias mesmo que todos a sua volta digam o contrário. Na verdade acho que isso é charme.
A Lu é assim como as mulheres lá de casa. Quando você acha que elas estão felizes, do nada começam a chorar ou a gritar e se irritar por qualquer coisa. Acho que é disso que a gente gosta. Dessa inconstância. São adoráveis ao jeito delas.
Eu comecei falando da morte e acabei entrando em outros assuntos. Na verdade está tudo relacionado. Vida, morte, amor, conflitos. Tudo dentro de uma só palavra: tempo. Nada foge ao tempo. Por isso estou escrevendo. Estou tentando parar o tempo. Segurá-lo em algum lugar de onde ninguém possa libertá-lo. Fazer com que ele fique registrado e que minha vida não seja apenas uma breve reunião de moléculas que vagou aleatoriamente pelo universo sem que gerações futuras saibam. Algum dia alguém pode descobrir isto aqui e vão saber que existi.
                                                                                   
                                                                                                    Ass. Eduardo Melo Freitas

terça-feira, 29 de outubro de 2013

LIVROS

Por Ernesto Xavier


De vez em quando o que mais me angustia é sentar na biblioteca e observar todos aqueles livros estáticos...parados olhando para mim. O ambiente mais solitário e depressivo do mundo. Os autores e suas histórias, esquecidos em estantes a espera de olhos que vejam suas palavras e que por alguns segundos possam sentir aquilo que estará gravado naquele local para sempre. Os livros retêm sentimentos e só podem gritar, colocar seus problemas para fora quando alguém lhes dá atenção. Eles não podem escolher o momento em que desejam desabafar...são escravos de suas próprias histórias, prisioneiros das palavras que carregam. Olho para eles e choro...ouço seus pedidos, atendo as suas reclamações e logo depois viro as costas e como um carcereiro, novamente os fecho em uma cela. Fecho a deles ao mesmo tempo em que volto a minha...não sou um livro, mas sei que durante todo aquele tempo em que estive ali, contemplando e deles sentindo pena, eu na verdade estava pensando em mim.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

SINTOMAS

Por Ernesto Xavier

Parar de fumar tinha sido o mais difícil. O cigarro a acompanhava desde os 19 anos. No início era só uma forma de parecer menos menina. Depois começou a ser o companheiro das noites insones escrevendo projetos da faculdade. No aeroporto de Congonhas ela se preocupava com o relógio. Havia poucos dias do início do horário de verão e ela tradicionalmente demorava a se adaptar. Quando se sentia à vontade, acabava, já era março. A ansiedade levava a mão à bolsa, procurando o maço. A frustração vinha com a lembrança imediata, ‘não posso fumar, você parou’.  Check-in feito, embarque, decolagem, Rio de Janeiro, aeroporto Santos Dumont. Não tinha medo de avião, mas daquela vez teve.  Tudo por conta de seis semanas que já mudavam a vida.
No Rio, o irmão mais velho a esperava para irem direto à Teresópolis. Ela era a filha do meio, enquanto a mais nova, o motivo da vinda, estava prestes a casar. Tinha saudade do Rio. Poder andar de Havaianas na rua sem ser julgada, se vestir com menos culpa, dar alívio à pele com a maquiagem, beber cerveja em pé no Baixo Gávea. São Paulo dava dinheiro. Fazer o que? Não é todo dia que uma biomédica consegue um salário tão bom. Falta da família? Sim, principalmente aos domingos. Porém morar sozinha era inigualável. A louça parou de ser uma obrigação diária. Lavava quando queria. Quem reclamaria? O pão integral não sumia repentinamente da geladeira. Nada de ser acordada em um dia de folga por conta de uma “emergência”, que no fim poderia ser resolvida por qualquer um. Estava isenta de perguntas como: Dormiu onde? Vai sair com quem? Está indo pra onde? Está levando o guarda-chuva?
Sentiu falta de alguém no dia em que esqueceu a chave do apartamento no trabalho e não tinha a quem recorrer. Retornou ao laboratório no trânsito de São Paulo. Uma chave não valia mais do que sua liberdade.
Subindo a serra pediu duas vezes que parasse para fazer xixi. Sintoma da gravidez. Ela mesma tinha feito o exame. Guardaria o segredo até quando não mais pudesse ou se criasse coragem de enfrentar os julgamentos. Eles viriam. 32 anos e ela era questionada por não ter ao menos um namorado. Marido era um sonho distante que a mãe cultivava. As tias especulavam que ela fosse lésbica, ‘Hoje em dia esse povo anda tão moderno. Pode tudo, né?!’. Ela fingia que não ouvia e que não entendia os olhares maldosos sempre que chegava para os encontros de família sozinha.
Encontrar o ex-namorado pouco mais de um mês antes não foi algo premeditado. Ela imaginava que ele iria ao show do Jack Johnson, mas daí encontrá-lo no meio de outras oito mil pessoas já seria contar com a sorte...ou azar. Encontrou. Ficaram. E daí?, pensou. Ele ainda morava com os pais. Terminaram a noite no apartamento dela. Preferia assim. Prefere acordar e saber onde está, poder ir ao banheiro de madrugada mesmo no escuro ou andar pelada pela casa sem receio de encontrar um garoto de 15 anos jogando videogame na sala.
Foi uma obra do acaso, ela sabia. Não estranhou, mesmo que por dentro a magoasse, o fato dele não ter dado mais notícias após aquela noite. Nenhum telefonema ou mensagem de texto. Mesmo forte, ela não gostava de se sentir usada.
Azia.
A alimentação era a mesma de sempre, porém o cheiro do cigarro passou a enjoá-la. Já sabia o que era. Fez o exame só para ter certeza.
-Como assim, grávida?
-Ué...sexo pode dar nisso, sabia?
-Você tem certeza que é meu?
Respirou fundo. Calou quando em outro momento expressaria com um sonoro “Filho da puta!”.
-Tenho.
-Você quer mesmo ter?
Ela desligou o telefone. Ele tentou ligar mais algumas vezes naquele dia, mas logo parou. Não queria comprometer um caso que estava tendo com uma mulher do trabalho. O “revival” com a ex tinha sido inevitável, dadas as circunstâncias, ele pensava.
Ela chorou dois dias seguidos. Não falou com ninguém. No terceiro dia teve uma consulta de emergência com a terapeuta. Falou por 40 minutos sem ser interrompida. Sentia-se exausta. Não era só o fato de ser abandonada por um homem com quem dividiu a cama por quase dois anos, mas por se culpar por ser independente, ativa, bem-sucedida, enquanto a mãe e as tias tinham sido apenas sombras toscas dos maridos, mulheres frustradas, que talvez quisessem o mesmo para as filhas. Tinha medo de ser como elas. Sentia culpa por saber que o seu sucesso as decepcionaria. ‘Sabia que isso ia acontecer. Com barriga e sozinha.’, elas diriam.
- O que essa gravidez representa pra você? Está te gerando angústia poder criar essa criança sozinha?, perguntou a terapeuta.
Os olhos encheram de água. Nada falou.
Vomitou no banheiro da festa de casamento da irmã. Ninguém viu. Não bebeu naquele dia. Entrou no altar acompanhada de um dos primos. Tinham tido um casinho na adolescência que não foi adiante. Os pais nem podiam imaginar. Gostavam da sensação de perigo que aquilo gerava. Depois de um tempo aquela adrenalina perdeu a graça. Eram adultos, precisavam seguir. Ele estava divorciado. Casou cedo com uma amiga de faculdade, mas a ex-esposa um dia chegou até ele e disse que estava indo embora. Para ele, naquele instante, parecia ser sem motivos, mas ela já o traía há mais de um ano com um homem que conheceu na internet. Foi viver com ele.
Seria fácil em outras circunstâncias ficarem juntos naquela noite, no entanto, apenas conversaram. Amanheceram juntos na varanda da casa da família. Choraram, confessaram segredos, desabafaram como nunca tinham feito. Descobriram que não sabiam quem era o outro até ali. Ela voltou para São Paulo. Ele para o Rio de Janeiro.
Na segunda-feira acordou sentindo dores muito fortes na barriga. Não conseguia dirigir. Foi de táxi para o hospital. Não seria mãe daquela vez. A pior dor era a da perda. A família nunca saberia da gravidez. Ela carregaria a história para sempre.
O vazio que ficava aos poucos seria preenchido de amor-próprio, onde antes houve mágoa e rancor. Um morreu para que ela renascesse. Uma vida se deu para que ela entendesse o valor que a vida tem. 
O celular apitava com a mensagem:
"Estarei em SP na semana que vem. Te vejo? Ass. Primo."
Sorriu.
Postagens mais recentes Postagens mais antigas Página inicial

Copyright © Boletim Afrocarioca | Design: Agência Mocho