segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A CARTA



Por Ernesto Xavier

14/01/01

Existe um momento na vida em que todo ser humano pensa na morte. É algo normal. Todo mundo sabe que nasceu um dia, não lembra desse dia, é claro, mas sabe que aconteceu. E também sabe que um dia vai morrer. Pode ser qualquer dia, mas vai acontecer. O que chamamos de vida é este curto espaço de tempo que existe entre a vida e a morte. Isso é óbvio! Todo mundo sabe disso. Mas de tão óbvio acabamos esquecendo. E às vezes ficamos surpresos quando já estamos velhos e temos certeza de que a morte está realmente próxima. Dá para perceber quando aquelas doenças chatas chegam. Não que eu seja um cara velho, coisa e tal. Sou novo. Até bastante. Mas o suficiente para já ter observado bastante gente e visto que o que estou falando é de verdade. Tenho 17 anos e nada de tão extraordinário aconteceu nesse tempo. Também não possuo nenhuma doença grave que possa levar alguém a pensar que estou escrevendo uma carta de despedida ou algo assim. Só que de vez em quando me bate uma tristeza danada e só quando passo isso para o papel é que aquele sentimento parece sair de mim. Não sai totalmente. Ele volta depois de um tempo. Mas pelo menos dá um alívio momentâneo.
Sou o tipo de cara que pensa toda hora na droga da minha vida. Às vezes acho que penso mais nela do que a vivo propriamente dizendo. Mas é algo que não consigo evitar. Quando vejo estou parado que nem um idiota olhando para o nada e viajando na minha história. Fantasio situações que poderiam acontecer comigo. Normalmente são coisas que eu desejaria fazer e não tenho coragem. Como falar pra Luísa que sou apaixonado por ela e não quero só ser seu amigo? Tenho um medo danado dela não querer nem olhar mais na minha cara. Eu adoro a companhia dela. Só de estar do lado já me faz bem pacas. Nós somos capazes de passar umas cinco horas conversando direto sem cansar. Falamos de tudo. Da nossa infância. Da família. Das coisas que acontecem no colégio(nós somos colegas de classe). Sobre o futuro. Ela sabe mais de mim do que meus pais. Só não tem idéia do quanto gosto dela. Só sabe como amigo. Nós vivemos grudados. Os caras da turma falam que ou eu sou uma bicha ou estou gamado na garota e sou um covarde que não tem coragem de falar com a mulher. Os caras não me entendem. E se ela achar que eu traí a confiança dela? Que fiquei me aproveitando da amizade para saber de segredos ou coisas assim? Eu não fiz isso, mas ela pode pensar que sim. Sou amigo dela com sinceridade e não tenho motivos para querer qualquer mal pra Luísa.
Eu sou um cara descolado. Gosto de falar alto, me divertir sem me preocupar com as conseqüências e tenho uma certa popularidade com os amigos. Tiro boas notas no colégio. Menos em física e química. Não sei pra quê aquilo tudo serve. Depois que acabar o 3º ano nunca mais vou ver nada disso. Só isso me consola. Acabar logo esse ano e nunca mais ter que estudar nem química, física ou coisa parecida.
Mesmo não sendo um cara que possa se considerar tímido, quando estou com a Lu (é assim que a chamo) não me vem a coragem necessária pra dizer uma só palavra a respeito de namoro. Falo até de relacionamentos que já tive, e foram muitos, mas nada de ter culhão pra abrir a boca e me declarar pra ela e tirar esse peso que me acompanha.
Foi exatamente por causa da Lu que comecei a pensar na morte pela última vez e me bateu essa tristeza tremenda que me fez escrever essa carta, que não tem destinatário. É só uma forma de terapia. Não se assustem. Não quero me matar por causa dela, nem por nenhuma outra coisa. Mas me bateu uma tristeza quando cheguei a conclusão de que poderia passar minha vida inteira pensando na Lu e não conseguir falar nada pra ela. Eu ia passar minha vida toda sem saber o que é amar alguém e ser correspondido. Eu sei que isso parece coisa de bicha, só que quando percebi já tinha parado um tempão e pensado essas drogas todas. Esse desgaste emocional todo me dá um fome danada. Abri a geladeira e não vi nada de interessante. Foi quando essa droga de pensamento veio de novo e comecei a achar que de repente essa coisa de amar não era algo pra um cara como eu. Sou muito largado com as mulheres. Menos com a Lu. Ela diz que é a única mulher no mundo que me conhece de verdade. Que sou durão com as pessoas só pra manter minha fama. Pode até ser verdade. Mas ver aqueles moleques das séries menores puxando o meu saco me fazem sentir o máximo. Eu gosto disso. Quem não gosta?
Quando eu era mais moleque e estudava nesse colégio, aliás, sempre estudei nesse lugar (conheço cada funcionário), eu admirava um cara do 2º ano que tinha muita popularidade com as garotas. O cara era bonito pra caramba, na verdade nem sei, acho que ele fazia o tipo que elas gostavam: burro e atlético. O cara tinha tanta nota vermelha no boletim que teve que sair do colégio antes do ano acabar pra não ser reprovado. Acabou indo pra um mais fraco e recuperar as notas. Falou que não se adaptou aos métodos da escola. Era burro mesmo. Mas o cara tinha um jeito com as garotas inconfundível. Parece que ele ficava o dia todo penteando aquela merda de cabelo. Nunca vi nada tão liso na vida. Ele andava como se estivesse gingando sempre e olhava no olho das garotas. Elas não resistiam. Passei a observar esse jeito dele e quis imitá-lo. Hoje faço tudo igual. Até que consigo um número razoável de meninas. Faço mais sucesso com as mais novas. Nem tão novas, senão pega mal pra mim. Mas o que importa é que esses truques não funcionam com a Lu. Ela é diferente dessas garotas. Ela é inteligente e de certa forma madura. Ela costuma cuidar do irmão mais novo quando o pai viaja. Ela não tem mais mãe. Na verdade tem, mas fugiu ela não sabe pra onde quando ela tinha uns sete anos. Ela já perguntou mil vezes para o pai por que a mãe fugiu e ele simplesmente fala “não sei”. Deve saber e esconde.
O negócio é que tenho uma pena danada dela. O pai é um cara legal, mas trabalha numa firma de petróleo e fica quinze dias no mar e quinze na terra. Ela acaba ficando só com o irmão grande parte do tempo. O cara ganha bem, mas aposto que ela preferia que ele ganhasse menos e tivesse uma presença maior em casa. O irmão tem 12 anos e está na idade que todo garoto precisa de um homem pra falar certas coisas que só um homem vai saber dizer. Sabe? Aquelas coisas... Eu às vezes fico lá batendo papo com ele. Ele se amarra. Me tem como um irmão. Nós temos bastante tempo pra conversar porque a Lu demora horas pra se arrumar. Quando eu marco um cinema eu a engano e falo que a sessão é uma hora antes do horário original. Se não fosse assim nós sempre perderíamos o filme e acabaríamos voltando pra casa com o rabo entre as pernas. Eu tento falar sobre garotas, futebol e escola com o Marco, irmão da Lu, mas eu tenho só 17 anos. Não sei tanto da vida. Não tenho tanta coisa pra passar pra ele. Enfim, faço o que posso.
A Lu possui uma beleza que acho que só eu consigo decifrar. Que ela é bonita todo mundo vê. Mas só eu sei segredos da beleza dela que nem ela deve perceber. Como ela morde os lábios inferiores de leve quando está sem graça. Ou quando ela franze a testa quando falo alguma besteira. Ou as duas covinhas na bochecha, que só aparecem quando ela sorri bem largo. Ou o cabelo que teima em cair no rosto e que ela joga pra trás das orelhas e que torna a cair. Ou o cheiro do shampoo que ela usa, o perfume, a voz fina e rouca. São tantas coisas que até me descontrolo e saio de si.
Nunca senti nada demais por garota nenhuma, só aquelas paixonites de pré-adolescência. Isso não conta. Depois de um tempo a gente olha pra essas garotas e vê como éramos idiotas em gostar de pessoas tão fúteis e sem conteúdo. Talvez por levar essa imagem na mente, nunca tenha me envolvido de verdade com ninguém nesse tempo todo. Só coisas breves, que duravam de um noite a um mês no máximo. Nada que envolvesse coração. Com ela foi inevitável. Quando percebi já estava caído e não tinha como voltar atrás. Às vezes penso que ela também. Acontece de pararmos nossa conversa sem nenhum motivo e ficarmos nos olhando durante um tempo. Logo um dos dois resolve acabar com aquele clima e introduz algum assunto qualquer que nem precisa ter motivo. O importante é acabar o constrangimento. Pelo menos é assim que penso. Pode ser que ela apenas se desligou do mundo e voltou de repente a si. Por essas e outras não tenho coragem de falar nada. Ela me conhece nos mínimos detalhes e eu não consigo decifrar seus códigos, seus pensamentos, seus desejos. É uma incógnita para mim. Um ser impenetrável. Não que ela seja fria, muito pelo contrário. Mas mulheres são assim mesmo. Difíceis de entender. Eu tenho uma irmã, mãe e avó morando comigo em casa. Eu e meu pai somos os únicos homens da casa. Ele me diz que não consegue entender minha mãe até hoje, mas que eles se dão bem assim mesmo. Acho essa parada maneira. Os homens são mais superficiais, eu diria. As mulheres são extremamente complexas. A começar pela parte biológica. Elas menstruam, tem filhos, produzem leite, tem alterações hormonais a toda hora. Elas se acham gordas e feias mesmo que todos a sua volta digam o contrário. Na verdade acho que isso é charme.
A Lu é assim como as mulheres lá de casa. Quando você acha que elas estão felizes, do nada começam a chorar ou a gritar e se irritar por qualquer coisa. Acho que é disso que a gente gosta. Dessa inconstância. São adoráveis ao jeito delas.
Eu comecei falando da morte e acabei entrando em outros assuntos. Na verdade está tudo relacionado. Vida, morte, amor, conflitos. Tudo dentro de uma só palavra: tempo. Nada foge ao tempo. Por isso estou escrevendo. Estou tentando parar o tempo. Segurá-lo em algum lugar de onde ninguém possa libertá-lo. Fazer com que ele fique registrado e que minha vida não seja apenas uma breve reunião de moléculas que vagou aleatoriamente pelo universo sem que gerações futuras saibam. Algum dia alguém pode descobrir isto aqui e vão saber que existi.
                                                                                   
                                                                                                    Ass. Eduardo Melo Freitas
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