Por Ernesto Xavier
14/01/01
14/01/01
Existe um momento na
vida em que todo ser humano pensa na morte. É algo normal. Todo mundo sabe que
nasceu um dia, não lembra desse dia, é claro, mas sabe que aconteceu. E também
sabe que um dia vai morrer. Pode ser qualquer dia, mas vai acontecer. O que
chamamos de vida é este curto espaço de tempo que existe entre a vida e a
morte. Isso é óbvio! Todo mundo sabe disso. Mas de tão óbvio acabamos
esquecendo. E às vezes ficamos surpresos quando já estamos velhos e temos
certeza de que a morte está realmente próxima. Dá para perceber quando aquelas
doenças chatas chegam. Não que eu seja um cara velho, coisa e tal. Sou novo.
Até bastante. Mas o suficiente para já ter observado bastante gente e visto que
o que estou falando é de verdade. Tenho 17 anos e nada de tão extraordinário
aconteceu nesse tempo. Também não possuo nenhuma doença grave que possa levar
alguém a pensar que estou escrevendo uma carta de despedida ou algo assim. Só
que de vez em quando me bate uma tristeza danada e só quando passo isso para o
papel é que aquele sentimento parece sair de mim. Não sai totalmente. Ele volta
depois de um tempo. Mas pelo menos dá um alívio momentâneo.
Sou o tipo de cara
que pensa toda hora na droga da minha vida. Às vezes acho que penso mais nela
do que a vivo propriamente dizendo. Mas é algo que não consigo evitar. Quando
vejo estou parado que nem um idiota olhando para o nada e viajando na minha
história. Fantasio situações que poderiam acontecer comigo. Normalmente são
coisas que eu desejaria fazer e não tenho coragem. Como falar pra Luísa que sou
apaixonado por ela e não quero só ser seu amigo? Tenho um medo danado dela não
querer nem olhar mais na minha cara. Eu adoro a companhia dela. Só de estar do
lado já me faz bem pacas. Nós somos capazes de passar umas cinco horas
conversando direto sem cansar. Falamos de tudo. Da nossa infância. Da família.
Das coisas que acontecem no colégio(nós somos colegas de classe). Sobre o
futuro. Ela sabe mais de mim do que meus pais. Só não tem idéia do quanto gosto
dela. Só sabe como amigo. Nós vivemos grudados. Os caras da turma falam que ou
eu sou uma bicha ou estou gamado na garota e sou um covarde que não tem coragem
de falar com a mulher. Os caras não me entendem. E se ela achar que eu traí a
confiança dela? Que fiquei me aproveitando da amizade para saber de segredos ou
coisas assim? Eu não fiz isso, mas ela pode pensar que sim. Sou amigo dela com
sinceridade e não tenho motivos para querer qualquer mal pra Luísa.
Eu sou um cara
descolado. Gosto de falar alto, me divertir sem me preocupar com as
conseqüências e tenho uma certa popularidade com os amigos. Tiro boas notas no
colégio. Menos em física e química. Não sei pra quê aquilo tudo serve. Depois
que acabar o 3º ano nunca mais vou ver nada disso. Só isso me consola. Acabar
logo esse ano e nunca mais ter que estudar nem química, física ou coisa
parecida.
Mesmo não sendo um
cara que possa se considerar tímido, quando estou com a Lu (é assim que a
chamo) não me vem a coragem necessária pra dizer uma só palavra a respeito de
namoro. Falo até de relacionamentos que já tive, e foram muitos, mas nada de
ter culhão pra abrir a boca e me declarar pra ela e tirar esse peso que me
acompanha.
Foi exatamente por
causa da Lu que comecei a pensar na morte pela última vez e me bateu essa
tristeza tremenda que me fez escrever essa carta, que não tem destinatário. É
só uma forma de terapia. Não se assustem. Não quero me matar por causa dela,
nem por nenhuma outra coisa. Mas me bateu uma tristeza quando cheguei a
conclusão de que poderia passar minha vida inteira pensando na Lu e não
conseguir falar nada pra ela. Eu ia passar minha vida toda sem saber o que é
amar alguém e ser correspondido. Eu sei que isso parece coisa de bicha, só que
quando percebi já tinha parado um tempão e pensado essas drogas todas. Esse
desgaste emocional todo me dá um fome danada. Abri a geladeira e não vi nada de
interessante. Foi quando essa droga de pensamento veio de novo e comecei a
achar que de repente essa coisa de amar não era algo pra um cara como eu. Sou
muito largado com as mulheres. Menos com a Lu. Ela diz que é a única mulher no
mundo que me conhece de verdade. Que sou durão com as pessoas só pra manter
minha fama. Pode até ser verdade. Mas ver aqueles moleques das séries menores
puxando o meu saco me fazem sentir o máximo. Eu gosto disso. Quem não gosta?
Quando eu era mais
moleque e estudava nesse colégio, aliás, sempre estudei nesse lugar (conheço
cada funcionário), eu admirava um cara do 2º ano que tinha muita popularidade
com as garotas. O cara era bonito pra caramba, na verdade nem sei, acho que ele
fazia o tipo que elas gostavam: burro e atlético. O cara tinha tanta nota
vermelha no boletim que teve que sair do colégio antes do ano acabar pra não
ser reprovado. Acabou indo pra um mais fraco e recuperar as notas. Falou que
não se adaptou aos métodos da escola. Era burro mesmo. Mas o cara tinha um
jeito com as garotas inconfundível. Parece que ele ficava o dia todo penteando
aquela merda de cabelo. Nunca vi nada tão liso na vida. Ele andava como se
estivesse gingando sempre e olhava no olho das garotas. Elas não resistiam.
Passei a observar esse jeito dele e quis imitá-lo. Hoje faço tudo igual. Até
que consigo um número razoável de meninas. Faço mais sucesso com as mais novas.
Nem tão novas, senão pega mal pra mim. Mas o que importa é que esses truques
não funcionam com a Lu. Ela é diferente dessas garotas. Ela é inteligente e de
certa forma madura. Ela costuma cuidar do irmão mais novo quando o pai viaja.
Ela não tem mais mãe. Na verdade tem, mas fugiu ela não sabe pra onde quando
ela tinha uns sete anos. Ela já perguntou mil vezes para o pai por que a mãe
fugiu e ele simplesmente fala “não sei”. Deve saber e esconde.
O negócio é que tenho
uma pena danada dela. O pai é um cara legal, mas trabalha numa firma de
petróleo e fica quinze dias no mar e quinze na terra. Ela acaba ficando só com
o irmão grande parte do tempo. O cara ganha bem, mas aposto que ela preferia
que ele ganhasse menos e tivesse uma presença maior em casa. O irmão tem 12
anos e está na idade que todo garoto precisa de um homem pra falar certas
coisas que só um homem vai saber dizer. Sabe? Aquelas coisas... Eu às vezes
fico lá batendo papo com ele. Ele se amarra. Me tem como um irmão. Nós temos
bastante tempo pra conversar porque a Lu demora horas pra se arrumar. Quando eu
marco um cinema eu a engano e falo que a sessão é uma hora antes do horário
original. Se não fosse assim nós sempre perderíamos o filme e acabaríamos
voltando pra casa com o rabo entre as pernas. Eu tento falar sobre garotas,
futebol e escola com o Marco, irmão da Lu, mas eu tenho só 17 anos. Não sei
tanto da vida. Não tenho tanta coisa pra passar pra ele. Enfim, faço o que
posso.
A Lu possui uma
beleza que acho que só eu consigo decifrar. Que ela é bonita todo mundo vê. Mas
só eu sei segredos da beleza dela que nem ela deve perceber. Como ela morde os
lábios inferiores de leve quando está sem graça. Ou quando ela franze a testa
quando falo alguma besteira. Ou as duas covinhas na bochecha, que só aparecem
quando ela sorri bem largo. Ou o cabelo que teima em cair no rosto e que ela
joga pra trás das orelhas e que torna a cair. Ou o cheiro do shampoo que ela
usa, o perfume, a voz fina e rouca. São tantas coisas que até me descontrolo e
saio de si.
Nunca senti nada
demais por garota nenhuma, só aquelas paixonites de pré-adolescência. Isso não
conta. Depois de um tempo a gente olha pra essas garotas e vê como éramos
idiotas em gostar de pessoas tão fúteis e sem conteúdo. Talvez por levar essa
imagem na mente, nunca tenha me envolvido de verdade com ninguém nesse tempo
todo. Só coisas breves, que duravam de um noite a um mês no máximo. Nada que
envolvesse coração. Com ela foi inevitável. Quando percebi já estava caído e
não tinha como voltar atrás. Às vezes penso que ela também. Acontece de
pararmos nossa conversa sem nenhum motivo e ficarmos nos olhando durante um
tempo. Logo um dos dois resolve acabar com aquele clima e introduz algum
assunto qualquer que nem precisa ter motivo. O importante é acabar o
constrangimento. Pelo menos é assim que penso. Pode ser que ela apenas se
desligou do mundo e voltou de repente a si. Por essas e outras não tenho
coragem de falar nada. Ela me conhece nos mínimos detalhes e eu não consigo
decifrar seus códigos, seus pensamentos, seus desejos. É uma incógnita para
mim. Um ser impenetrável. Não que ela seja fria, muito pelo contrário. Mas
mulheres são assim mesmo. Difíceis de entender. Eu tenho uma irmã, mãe e avó
morando comigo em casa. Eu e meu pai somos os únicos homens da casa. Ele me diz
que não consegue entender minha mãe até hoje, mas que eles se dão bem assim
mesmo. Acho essa parada maneira. Os homens são mais superficiais, eu diria. As
mulheres são extremamente complexas. A começar pela parte biológica. Elas
menstruam, tem filhos, produzem leite, tem alterações hormonais a toda hora.
Elas se acham gordas e feias mesmo que todos a sua volta digam o contrário. Na
verdade acho que isso é charme.
A Lu é assim como as
mulheres lá de casa. Quando você acha que elas estão felizes, do nada começam a
chorar ou a gritar e se irritar por qualquer coisa. Acho que é disso que a
gente gosta. Dessa inconstância. São adoráveis ao jeito delas.
Eu comecei falando da
morte e acabei entrando em outros assuntos. Na verdade está tudo relacionado.
Vida, morte, amor, conflitos. Tudo dentro de uma só palavra: tempo. Nada foge
ao tempo. Por isso estou escrevendo. Estou tentando parar o tempo. Segurá-lo em
algum lugar de onde ninguém possa libertá-lo. Fazer com que ele fique
registrado e que minha vida não seja apenas uma breve reunião de moléculas que
vagou aleatoriamente pelo universo sem que gerações futuras saibam. Algum dia
alguém pode descobrir isto aqui e vão saber que existi.
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