segunda-feira, 26 de outubro de 2015

MULHER ANTENADA






Maria tentava escrever uma carta. Em vão. Sentia uma dificuldade extrema de expor sentimentos e opiniões com uma caneta sobre o papel. Não fazia isso desde a infância, pensava. Sua última lembrança de receber algo escrito por alguém remetia a um cartão de natal que ganhou da avó aos 9 anos de idade. O ato de enviar cartas ela não possuía em sua gaveta de memórias remotas. 

Ela é a típica mulher antenada: tem tablet, smartphone, ultrabook e Ipod. Evita comer glúten e lactose. Malha 4 vezes por semana e passa Renew. Posta no Instagram, compartilha no Facebook e está desistindo do Twitter. Fez MBA em Marketing e Pós-graduação em Administração Pública. Lê horóscopo no jornal pela manhã, mas ao fim do dia já não se lembra do que leu e nem se a previsão deu certo. É apenas um hábito. O nome Maria é considerado por ela interessante, por remeter a imagem de uma mulher mais simples, o que contrasta com seu estilo sofisticado. Ela está sozinha em um quarto de hotel em São Paulo. A noite fria que ela abraçou ao caminhar pela Avenida Paulista ficou do lado de fora. No quadrado simples e confortável onde ela se encontra o clima é ameno, acompanhando os gestos delicados dela. 

Escreve, apaga, torna a escrever, desiste por um tempo, retorna, não se agrada com a primeira frase e se desespera por ter tanto a dizer e ver a página vazia. Não encontra palavras e nem o impulso que a levou a tomar aquela atitude. 

Está em São Paulo para uma reunião com investidores estrangeiros que querem comprar uma parte da empresa em que ela trabalha. Chegara um dia antes para preparar alguns detalhes com mais calma e não correr o risco de um vôo atrasado na manhã da reunião. É uma mulher prevenida. 

Duas horas antes, quando sentada na cafeteria da Livraria Cultura, pensava no caos que tomava conta de sua alma até então em equilíbrio. Tinha nas mãos um envelope que prometera abrir apenas quando encontrasse Gabriel, seu namorado há 3 anos. Um oposto que a completava onde ela mais precisava. Um semelhante que a confrontava por saber que a mulher que amava não era perfeita, pois ninguém é. Ela não resistiu e abriu o envelope para saber seu conteúdo. Sentia-se no direito de ter a solidão e a reação que julgasse oportuna, sem o olhar de conhecidos. 

O que diria Virginia Woolf sobre Maria? O que descreveria Simone de Beauvoir? E Lygia Fagundes Telles? Clarice Lispector? Martha Medeiros teria algo de bom a lhe dizer? Suas mentoras não alcançavam a complexidade das suas necessidades e medos. O que era já não sabia mais. Não havia paradigmas a seguir. Agora vivia o presente e o futuro, a certeza e a esperança, seu sossego e a perdição. Estava grávida. 

Seus planos de maternidade remetiam a um tempo de inocência em plena efervescência hormonal da adolescência. Agora aos 29 anos só conseguia pensar na promoção que batalhava para alcançar na empresa, nos lugares do mundo onde ainda gostaria de pisar, na estabilidade financeira e emocional que sentia ainda distante de acordo com os padrões rígidos que estabelecera para si. Ela que era fruto da revolução feminina das décadas de 60 e 70 o qual suas avós e mãe enfrentaram. 

Tentava se olhar por fora. Não a casca que cobria suas vísceras, mas ter um olhar distanciado daquilo que vivia a cada segundo. Achava engraçado perceber a loucura que carregava no olhar distante, o pensamento mergulhado em descobertas, tudo misturado. Era apenas ela e nada mais.

O celular começou a vibrar sobre a mesa onde Maria tentava escrever. Ela queria enviar a carta para Gabriel, carta esta que chegaria depois dela ao Rio de Janeiro. Foi a forma que encontrou para dar a inesperada notícia: ele seria pai. Não tinha coragem de falar para ele diretamente. Pelo menos até aquele momento não encontrava essa força. O celular continuava a vibrar. Gabriel. 

- Alô, amor?
- Oi.
- Tá tudo bem?
- Tudo. Não foi pro futebol hoje?
- Não. Fiquei em casa. Me bateu uma vontade de te falar uma coisa.
- O que? Fala.
- Eu até anotei pra não esquecer: “Nada pode passar sem lágrimas, suor e amor. Se não for pra sentir, prefiro esperar. Meu tempo é feito de intensidades. Só é perfeito para nós o que contiver as qualidades e defeitos certos para aquilo que precisamos aprender. Nossas necessidades são cheias de mistérios.”

- De quem é?
- Meu. 

Em poucas palavras ele conseguiu dizer o que ela precisava escutar. Como se ele já soubesse de tudo o que estava acontecendo dentro dela. Maria conseguiu captar os sentimentos de cada frase. Sem que ele percebesse, ela começou a chorar. Tinha uma vida que precisaria muito dela. E a partir dali saberia que ela também precisaria tanto daquela vida que gerava. Vida alimentando vida. 

- Lindo.
- Ninguém nunca nesse mundo vai entender o que temos. Até porque o que temos não é deste mundo. Não é mesmo? Te amo.

Ficaram ainda um tempo conversando e depois se despediram. As declarações enigmáticas de Gabriel tinham atingido ela em cheio. A mulher antenada agora seria mãe. Foi então invadida por uma felicidade que a deixava inquieta, sem palavras que pudessem descrever com justiça os sentimentos que se faziam presentes. Queria poder inventá-las de acordo com suas crenças e desejos, pois as que aprendera não lhe confortavam. O que sentia não tinha um símbolo, mas era carregado de significados. Era tão bom ser inexplicável!


Ernesto Xavier


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