sexta-feira, 3 de março de 2017

MAIS UM


Eu tinha onze anos quando passei uma tarde inteira jogando futebol com um amigo no clube onde meu pai era vice-presidente e o avô dele diretor. Éramos duas crianças negras suadas e felizes. A tarde já caía quando passamos na frente de um dos salões onde acabara de acontecer uma festa de aniversário. Algumas pessoas guardavam o que havia sobrado. Foi quando uma mulher nos viu e pediu que esperássemos. Ela trouxe uma caixa cheia de doces e salgados e com uma cara de pena, piedade, sei lá, nos disse:
- Isso aqui é pra vocês dividirem com seus amiguinhos na rua.
Sim, ela achou que éramos meninos de rua pedindo comida. Fez uma boa ação e partiu com seu coração confortado por ter colaborado para a acabar com a fome de alguns pobres garotos.
Nesta mesma época acordei em um sábado com o corpo cheio de pintas vermelhas. Minha mãe, preocupada, me levou à emergência de um hospital perto de nossa casa. O médico mal me olhou e diagnosticou:
- É sarna.
Passou um sabonete especial para que eu pudesse tomar banho.
Não melhorei. Seguia com as pintas e coceira. Foi então que ela resolveu me levar a uma médica de sua confiança na segunda-feira. Diagnóstico:
- Alergia a determinados tipos de corantes.
Eu tinha bebido muita Fanta Uva, só isso. Eu não vivia em condições insalubres, sem higiene, saneamento básico, etc. Mas o médico de pronto assim pensou.
Dez anos se passaram e eu estava prestes a me formar em Jornalismo. Estudei em uma universidade particular. Era o único aluno de toda a faculdade com bolsa de Iniciação Científica paga pelo Estado. Participei de uma pesquisa por 3 anos. Minha monografia tratou sobre o mesmo tema. Ela era, naturalmente, maior e mais elaborada que as demais, já que eu estava debruçado sobre ela há mais tempo que os outros alunos.
Normal.
No dia da apresentação para a banca, uma professora veio até mim e me chamou no canto para conversar:
- Ernesto, levantaram uma suspeita sobre o seu trabalho. Tudo que está ali foi você que escreveu?
- Sim, professora. Por que? A senhora me conhece.
- Desconfiam que você tenha plagiado ou comprado.
- Nunca. Jamais.
Após a apresentação o professor que levantou a suspeita pediu desculpas e me parabenizou pelo trabalho. Tirei 10. Mas ainda estava puto com aquilo.
Eu não vivi em locais de vulnerabilidade social. Estive em espaços privilegiados, onde na grande maioria das vezes eu era o único(ou um dos poucos) negros presentes. Eu tive a oportunidade de estudar, ter plano de saúde, lazer, boa alimentação, estrutura familiar. Tive tudo, entendem? Mesmo assim, em todos os momentos não deixei de ser um homem negro brasileiro, o que significa carregar o estereótipo nas costas, o olhar de desconfiança alheio, a descrença da sociedade, o ódio até, a pena em alguns casos, o desprezo.
João Vítor, de 13 anos, foi morto com um soco, quando pedia comida na porta do Habib’s, em São Paulo. João Vítor era preto e pobre. Franzino.
Que ameaça trazia para um segurança muito maior do que ele?
Não foi só a agressão que matou João Vítor. Foi o estereótipo, a desconfiança, a descrença, o ódio, o desprezo. O racismo, compreende?
Ele é mais um a morrer apenas por ser preto e pobre.
Mais uma família mutilada.
Mais um para a estatística que poucos dão atenção.
Para morrer, basta nascer preto
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