terça-feira, 19 de janeiro de 2010

MARIA, ESPERA!


O sertão de Boquira já não dava mais pra viver. Fazia um ano que Maria tinha perdido seu velho Sebastião. Já não tinha mais com quem dividir as tarefas, a angústia, a solidão. Os ossos fracos, a pele enrugada do tempo seco, tudo era árido, inclusive seu coração.
Há 25 anos não via nenhum dos 3 filhos: José, Jorge e Ubirajara. Tinham partido pra tentar a vida no Rio de Janeiro. As cartas de mês em mês e um telefonema nas datas especiais eram a única forma de comunicação dessa mulher de 70 anos. Quando sobrava, mandavam um dinheirinho pros pais.
Vivia porque a morte talvez tenha esquecido dela. Seu tempo já tinha passado, o sorriso já não lhe vinha à boca. A fome já não era mais de comida, mas de vida. Sentia saudade da casa cheia de homens. Seus meninos. Um de 45, um de 40 e outro de 35. Quando saíram de Boquira, no interior baiano, o menor tinha só 10 anos. Chorava por deixar os pais, mas a mãe sabia que ali não existia futuro para eles. Era como se o que restava dela estava sendo arrancado, sem perdão. Entrou em depressão. Só Tião para cuidar dela.
Foram vinte horas de viagem e o peso do mundo em seu corpo de tanta ansiedade. Cruzou o sertão baiano, Minas Gerais, até chegar ao Rio. Nunca tinha saído da Bahia, no máximo uma ida a Feira de Santana, Jequié, Bom Jesus da Lapa. Tinha medo da grandeza da Terra. Não queria se perder.
Estava maravilhada com o tamanho daquele Rio de Janeiro que ela só tinha visto na televisão. Era muito maior do que imaginava. Achou estranho aquele amontoado de casas uma em cima da outra. Como podiam viver assim?
Chegou à rodoviária. Não trazia mais do que uma mala de lona com as poucas roupas que possuia. Nunca tinha visto tanta gente junta. Procurou o rosto dos filhos no meio da multidão. Não achou. Será que tinham mudado tanto? Mas já tinha visto fotos novas deles.
Maria sentou em um banco e esperou. Será que tinham esquecido dela? Ou aconteceu alguma coisa no caminho? O Rio de Janeiro é tão perigoso. Já não dava importância para a fome que o estômago a todo momento avisava. Queria um sinal de rosto conhecido. Tinha vontade de chorar, porém não lembrava como era. Nunca a solidão tinha sido tão forte. Fechou os olhos e ouvia milhares de vozes falando ao mesmo tempo. Tentava lembrar de coisas boas. Quase duas horas já tinham se passado.
Até que Maria ouviu: "Maria, espera!" Abriu os olhos. Não viu ninguém conhecido. Seria ilusão? Girou no próprio eixo a procura daquela voz que a chamou e nada. Nenhum olhar cruzava com o seu. Como se ela fosse invisível aos olhos humanos. "Será que estou morta, meu Deus?"
Neste momento uma mão quente tocou seu ombro. "Vó?" Maria deixou uma lágrima cair e se virou. Madalena, sua neta. Tão parecida com o filho José. Só tinha visto mais nova nas fotos que o filho mandava. Um abraço amigo depois de tanto tempo.
-Desculpa, vó. Vim desesperada pra buscar a senhora.
-Não tem problema minha filha.
-Que bom conhecer a senhora.
-Eu que o diga!
-Peguei um engarrafamento monstruoso pra chegar aqui.
-O que é isso, menina?
-Nada vó, nada. Esperou muito tempo?
-Vinte cinco anos, minha neta. Vinte cinco anos.


Imagem: Matisse, Henri.
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