segunda-feira, 5 de outubro de 2015

CANTO DE DOR



Ao sair pela madrugada fria de julho a rua era só silêncio. As luzes amarelas mostravam o caminho a percorrer. Para trás deixava parte de si. Suas partes mais importantes, na verdade. Doía deixar duas crianças sozinhas. Uma menina de 12 e um garoto de 8 anos. A mais velha tinha a responsabilidade de cuidar do menor. Rosângela, ou Rose, como era conhecida em Antares, onde vivia e no trabalho, olhava apenas para frente, pois se fraquejasse desistia e voltava para o aconchego deles.

O ex-marido tinha sido preso por roubo há 4 anos. Ela se sentia aliviada porque não apanhava mais. Denunciar, em sua cabeça, seria o mesmo que assinar a própria sentença. Quem protege uma mulher negra na favela? Quem iria mantê-lo afastado dela e das crianças?

O horizonte que ficava azul aos poucos a levava a pensamentos distantes. O que a teria levado até ali? Por que precisava criar os filhos dos outros para que pudesse dar o de comer para os seus próprios filhos? Quem criava os seus? Deixaria para eles o mesmo legado de desesperança? Mantinha-se firme para que não a vissem tropeçar. Fazia questão de não dormir no trabalho para ter ao menos alguns instantes com eles. Queria fazer alguma diferença.

Mantinha contato constante pelo celular com Luísa, a filha mais velha, para saber como estavam. Seu corpo estava longe, mas a alma cercava os filhos para protege-los.

O que seria ter liberdade? Não sabia, pois tudo a sua volta lhe impunha limites quase intransponíveis. Não podia ir onde quisesse. Não tinha estudo para mudar ou crescer no trabalho. Não tinha dinheiro. Não tinha mais forças para sonhar. Se sentia presa ao chão para sempre. Seu maior medo era deixar essa herança para os filhos.

O seu dia era marcado pelo pensamento distante, o trabalho incessante, o carinho que tinha pelo filho dos patrões.

No ônibus ao retornar ligou o rádio no celular como de costume. Conseguiu um espaço em pé após uma disputa corporal entre homens e mulheres. Vencia o mais forte. Atrás dela um rapaz que aparentava 25 anos fazia movimentos na tentativa de sentir seu corpo. Ela gritou. Todo o ônibus olhou em sua direção. O rapaz desistiu e fingiu que nada tinha acontecido. Era a selva. Ela era a leoa defendendo o alimento dos filhotes. Conseguiu ouvir no noticiário que um confronto entre policiais e traficantes tinha ocorrido na comunidade onde vivia. Não chegava a ser uma novidade, mas nada tirava o aperto de seu peito. A preocupação com quem havia deixado em casa. Segurava o terço dentro da bolsa e pedia a Nossa Senhora das Dores que protegesse os seus.

Ouviram os primeiros tiros longe dali. Mesmo assim se puseram deitados no chão. Aos poucos os estampidos ressoavam cada vez mais próximos. O barulho de motos passando em disparada chamaram a atenção do garoto. Levantou-se para vê-las passar. Luísa não teve tempo de reagir. Patrick recebeu o impacto no peito e caiu no chão. O tiro havia atravessado a janela. Fulminante. Por cerca de 10 minutos ninguém sabia o que tinha acontecido dentro daquela casa. Todos estavam escondidos dentro das suas e pouco poderiam saber sobre o que passava do lado de fora. Os sons de tiro cessaram. As sirenes das viaturas estavam distantes. O grito de horror e desespero de Luísa invadiu todas as casas ao redor.

Na favela nenhuma bala é perdida.

Rose apertava o passo para chegar em casa. Queria ter estado perto dos pequenos quando a guerra teve lugar. Ela não via mais nada. Tentava abrir espaço na multidão. Aos solavancos passava. Todos parados a olhar a tragédia. O faziam por curiosidade, pena, desespero, alívio. Assistir as mazelas humanas de fora dá a dúbia sensação de pertencimento, por saber que aquela é também sua realidade, mas ao mesmo tempo alívio, pois sabe-se que ao menos dessa vez você não foi o atingido. Por mais que muitos ali sentissem o acontecido, só ela teria a real noção de sua dor. Apenas ela deixaria de dormir seguidas noites em prantos. Ela se culparia. Ela carregaria o peso da ausência, a opressão do vazio.

- É minha casa. Por que estão na frente da minha casa? Deixem eu ver meus filhos! Meus filhos. Meus filhos.

Parou.

O que estava acontecendo? Por que tanta gente? Por que os policiais na sua porta?

Tentaram impedir que entrasse.

- É minha casa!
- Mãe!!! – gritava Luísa lá de dentro. Abriram para que a mãe passasse.

Viu o pano branco sobre o corpo caído. Acreditar em que? Se apegar a quem? Onde consolar-se?
Um grito sem som. Olhar perdido. O silêncio de sua dor inundava a favela.

Queria traze-lo de volta para sua barriga, onde ele estaria sempre protegido. Ninava o corpo inerte e cantava uma música de dormir inteligível. Era como uma oração própria, só compreendida por eles. Balançava para frente e para trás. Enquanto isso os abutres empoleiravam-se na janela para ver a cena. Tiravam fotos para colocar na capa do jornal no dia seguinte. Mais uma história para a conta.

Suas mãos, de parcas forças, já haviam carregado bebês alheios, mexido panelas, segurado enxadas e agora tentavam enxugar seu desespero.

Deveria ser proibido mãe enterrar filho.





Ernesto Xavier
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