Ao sair pela madrugada fria de julho a rua era só silêncio.
As luzes amarelas mostravam o caminho a percorrer. Para trás deixava parte de
si. Suas partes mais importantes, na verdade. Doía deixar duas crianças
sozinhas. Uma menina de 12 e um garoto de 8 anos. A mais velha tinha a
responsabilidade de cuidar do menor. Rosângela, ou Rose, como era conhecida em
Antares, onde vivia e no trabalho, olhava apenas para frente, pois se
fraquejasse desistia e voltava para o aconchego deles.
O ex-marido tinha sido preso por roubo há 4 anos. Ela se
sentia aliviada porque não apanhava mais. Denunciar, em sua cabeça, seria o
mesmo que assinar a própria sentença. Quem protege uma mulher negra na favela?
Quem iria mantê-lo afastado dela e das crianças?
O horizonte que ficava azul aos poucos a levava a
pensamentos distantes. O que a teria levado até ali? Por que precisava criar os
filhos dos outros para que pudesse dar o de comer para os seus próprios filhos?
Quem criava os seus? Deixaria para eles o mesmo legado de desesperança?
Mantinha-se firme para que não a vissem tropeçar. Fazia questão de não dormir
no trabalho para ter ao menos alguns instantes com eles. Queria fazer alguma
diferença.
Mantinha contato constante pelo celular com Luísa, a filha
mais velha, para saber como estavam. Seu corpo estava longe, mas a alma cercava
os filhos para protege-los.
O que seria ter liberdade? Não sabia, pois tudo a sua volta
lhe impunha limites quase intransponíveis. Não podia ir onde quisesse. Não
tinha estudo para mudar ou crescer no trabalho. Não tinha dinheiro. Não tinha
mais forças para sonhar. Se sentia presa ao chão para sempre. Seu maior medo
era deixar essa herança para os filhos.
O seu dia era marcado pelo pensamento distante, o trabalho incessante,
o carinho que tinha pelo filho dos patrões.
No ônibus ao retornar ligou o rádio no celular como de
costume. Conseguiu um espaço em pé após uma disputa corporal entre homens e
mulheres. Vencia o mais forte. Atrás dela um rapaz que aparentava 25 anos fazia
movimentos na tentativa de sentir seu corpo. Ela gritou. Todo o ônibus olhou em
sua direção. O rapaz desistiu e fingiu que nada tinha acontecido. Era a selva.
Ela era a leoa defendendo o alimento dos filhotes. Conseguiu ouvir no
noticiário que um confronto entre policiais e traficantes tinha ocorrido na
comunidade onde vivia. Não chegava a ser uma novidade, mas nada tirava o aperto
de seu peito. A preocupação com quem havia deixado em casa. Segurava o terço
dentro da bolsa e pedia a Nossa Senhora das Dores que protegesse os seus.
Ouviram os primeiros tiros longe dali. Mesmo assim se
puseram deitados no chão. Aos poucos os estampidos ressoavam cada vez mais
próximos. O barulho de motos passando em disparada chamaram a atenção do
garoto. Levantou-se para vê-las passar. Luísa não teve tempo de reagir. Patrick
recebeu o impacto no peito e caiu no chão. O tiro havia atravessado a janela.
Fulminante. Por cerca de 10 minutos ninguém sabia o que tinha acontecido dentro
daquela casa. Todos estavam escondidos dentro das suas e pouco poderiam saber
sobre o que passava do lado de fora. Os sons de tiro cessaram. As sirenes das
viaturas estavam distantes. O grito de horror e desespero de Luísa invadiu
todas as casas ao redor.
Na favela nenhuma bala é perdida.
Rose apertava o passo para chegar em casa. Queria ter estado
perto dos pequenos quando a guerra teve lugar. Ela não via mais nada. Tentava
abrir espaço na multidão. Aos solavancos passava. Todos parados a olhar a
tragédia. O faziam por curiosidade, pena, desespero, alívio. Assistir as
mazelas humanas de fora dá a dúbia sensação de pertencimento, por saber que
aquela é também sua realidade, mas ao mesmo tempo alívio, pois sabe-se que ao
menos dessa vez você não foi o atingido. Por mais que muitos ali sentissem o
acontecido, só ela teria a real noção de sua dor. Apenas ela deixaria de dormir
seguidas noites em prantos. Ela se culparia. Ela carregaria o peso da ausência,
a opressão do vazio.
- É minha casa. Por que estão na frente da minha casa?
Deixem eu ver meus filhos! Meus filhos. Meus filhos.
Parou.
O que estava acontecendo? Por que tanta gente? Por que os
policiais na sua porta?
Tentaram impedir que entrasse.
- É minha casa!
- Mãe!!! – gritava Luísa lá de dentro. Abriram para que a
mãe passasse.
Viu o pano branco sobre o corpo caído. Acreditar em que? Se
apegar a quem? Onde consolar-se?
Um grito sem som. Olhar perdido. O silêncio de sua dor
inundava a favela.
Queria traze-lo de volta para sua barriga, onde ele estaria
sempre protegido. Ninava o corpo inerte e cantava uma música de dormir inteligível.
Era como uma oração própria, só compreendida por eles. Balançava para frente e
para trás. Enquanto isso os abutres empoleiravam-se na janela para ver a cena.
Tiravam fotos para colocar na capa do jornal no dia seguinte. Mais uma história
para a conta.
Suas mãos, de parcas forças, já haviam carregado bebês
alheios, mexido panelas, segurado enxadas e agora tentavam enxugar seu
desespero.
Deveria ser proibido mãe enterrar filho.
Ernesto Xavier
Aos prantos! Tiro certeiro!
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